domingo, 15 de dezembro de 2013

No meio da agonia



O homem morrendo, se estrebuchando, vendo cachorros latindo adiante e em seguida mais perto, até zunir no ouvido, causando dor e vontade de apressar as coisas. Mas, calma, ainda restam uns tremores e a falta de ar - buscando o ar que não existe, esperando a próxima reação. Dele, um urro; de cantos mais escondidos, uma confusão de ideias, conceitos e argumentos que o homem morrendo tentava resumir, no desespero, agarrando pedaços de explicações num momento cheio de mistério ou vazio, ninguém sabe. Suas últimas forças estavam voltadas para a sobrevivência de alguma frase redentora, uma pérola, um pequeno big bang para acertar as contas com este mundo. Corredores, macas, gritos, anestésicos compondo um espaço de espelhos e labirintos, como pedem os críticos. Morte literária e morte real num mesmo plano, ineditíssimo, mas agora possível, graças às novas tecnologias e à disposição exemplar do autor moribundo. 

O homem morrendo pensou em Malone Meurt*, já escrito e descartável; não era momento de influências nem citações. Queria traduzir o turbilhão, moldar o derradeiro acontecimento de uma forma mais clara e brilhante, pois ainda lhe restava vaidade, a força imensa e máxima da natureza humana. O projeto, no meio da agonia: deixar boa imagem, mesmo naquela situação, mesmo sentindo-se inferior e humilhado diante das preliminares da morte. Olhares piedosos eram piores do que deixar de existir. Depois, concluiu: o desfecho, no entanto, é igual. Tudo cessa para todos.

Estado difícil para elaborações, mas ele seguia assim mesmo, aproveitando intervalos das dores, intervalos mínimos, para dar-se à tarefa de elucidar e a tarefa de elucidar se sobrepunha até mesmo ao medo e à tristeza de ir-se. Iria morrer sem emoção, objeto confuso mergulhado no nada. Do lado de fora não havia mais esperança. Desligaram os aparelhos, mas o coração não parou de bater. A cabeça ainda estava envolvida nesses temas quando o médico voltou para replugar o homem que estava morrendo, e nesse instante nem tanto, porque ele se atracou ao último suspiro, transformando a pequena dose de ar numa espécie de brisa, depois num tornado entrando pela garganta e ventilando os pulmões.  Aos poucos, os corpos de branco foram ganhando corpo, uma luz fraca iluminou o quarto do hospital e o milagre estava feito.

De volta a casa, saudável, o homem sentou-se para escrever sua experiência. Passou ali alguns anos da sobrevida, empenhado na produção de um prelúdio para a morte, longe de amigos e parentes. Tentou de todas as formas e conteúdos, revirou o idioma, garimpou palavras certeiras, andou em volta de si para encontrar o esqueleto da história e não chegou aonde pretendia ou imaginava. Não houve tempo para resignação. Só havia a vontade de retornar àquele momento crítico para tentar novamente construir sua obra póstuma.



* Malone Morre (Samuel Beckett, 1951)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Iberê segundo Paulo

Alagoano crescido no Recife e agora radicado em São Paulo, o jornalista Lula Falcão (foto) estreou na ficção com o divertido romance Todo dia me atiro do térreo, cuja heroína era viciada em literatura, vodca e miojo. Em seu segundo romance, Iberê segundo Paulo(Editora Nhambiquara) retoma o estilo farsesco e sarcástico para retratar uma dupla de crápulas: o pastor Iberê e seu ghost-writer, Paulo. O primeiro, um sem-teto que decide virar pastor e enriquecer com uma igreja, o segundo um escritor fracassado e cínico que se dispõe a ajudá-lo na empresa. O resultado é uma sucessão de eventos folhetinescos, com altas doses de êxtase religioso, sexo, drogas e conhaque barato, além de tramoias e traições. Apesar do tom satírico, a narrativa deixa, no final, um gosto amargo na boca do leitor. Caderno Literário PE

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Amore

Vamos, acorde, agora, é hora, pare de apertar o botão de soneca.
Passou do meio dia, faz sol, vou abrir a janela. Um, dois, três.
Tanto tempo na cama – isso e TV ligada. Abre os olhos só para
escolher voltar a dormir e quando levanta para ir ao banheiro
sai cambaleando como se não conhecesse a casa.

Ainda não abri a janela porque seu corpo está imóvel. O remédio
ainda não bateu – são quinze dias -, mas você poderia cooperar,
apelando para uma daquelas suas qualidades. Nessas horas,
serve até espírito crítico. Pense na aporrinhação das pessoas
preocupadas com seu estado; pense na sua imagem, amore.
Hoje em dia estão de olho em você, o tempo todo, observando
algum sinal de anormalidade. Você não pode, amore, continuar
assim, variando, ora desatenta, ora irritada. Quando não é isso,
está dormindo. Como agora, e não acorda. Acorda, amore.

Fosse no  meu tempo iriam confundir com preguiça. Pagava mal;
agora é depressão, eu sei, sabemos. O problema é que o povo não
sabe, é preciso disfarçar, manter a linha, segurar a onda. Não
beba, não conte histórias longas, fale baixo. Mas primeiro você
precisa acordar.  Tome banho, vista uma roupa, vamos embora.

Porra, amore.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Autópsia de um Bípede

Dia 27, às 19h, na Casa das Rosas (Av. Paulista, 37 – Bela Vista – São Paulo), lançamento do livro “Autópsia de um Bípede”, do meu amigo Marco Polo. 

“Embora há anos atrás tenha escrito uma plaquete com 18 textos a que intitulei Narrativas, considero este meu primeiro livro de contos. Ele está dividido em sete partes. Após um prólogo, na primeira parte estão narrativas curtas sobre um mesmo personagem, num clima lírico. Na segunda estão dois textos híbridos, contando mais uma situação do que uma história. A terceira parte é composta de minicontos. A quarta tem o formato de argumentos para curtas-metragens. A quinta tem um cunho humorístico. A sexta se curva sob um toque de tragédia. Há um interlúdio e por fim o personagem inicial é retomado em dois relatos.
Apesar dos tons diferenciados e da forma variada, alguns elementos garantem a unidade do livro. Primeiro, a recorrência de alguns personagens. Depois, a constante aparição dos temas amor e morte, infância e juventude. Também é constante a linguagem despojada. Finalmente, em todos os textos há a preocupação de contar bem uma boa história, sem grandes digressões. Mesmo os contos mais, digamos, difusos, têm um caráter narrativo. Na verdade, narrativas diferenciadas, uma vez que meus temas não são o cotidiano normal, mas justamente o que quebra a normalidade. O próprio título do livro já indica algo assim.
Por fim, há uma frequência do que chamo de conto com dobras. Contos que se desdobram em uma variação do mesmo tema. Contos que falam de gêmeos (duplos?). Contos que se desenvolvem por etapas ou que contam de modo diferente a mesma história”. (Marco Polo)

domingo, 3 de novembro de 2013

O tiozinho envelhece


De repente, o sujeito para e conclui não estar entendendo nada. Entende a seu jeito, baseado no passado, mas não há valia para predileções fora de época. Isso passou; já era. Parece que foi ontem, mas não foi, acabou a festa.

Durante anos, já na meia idade, ele tentou acompanhar os modos e costumes em voga, a nova coreografia e o comportamento dos mais jovens. Desistiu antes de a velhice chegar inteira e agora pergunta o que resta.

O personagem já esteve aqui, em outra história. Era enturmado com jovens, frequentava suas festas e conhecia algumas intimidades, especialmente das meninas. Nada demais – só retórica -, pois no dia em que tentou acesso a prazeres juvenis, via uma ex-aluna, sentiu que estava vencido pelo tempo. A moça queria uma pessoa da idade dela, também da turma, e revelou sua opção com cuidado para não ferir a alma do velho professor.

Então, ele recolheu-se. Gasta seus últimos anos com literatura, sem entusiasmo para mulheres de sua idade. O vigor das jovens, mesmo sob a inocência, ainda é a razão da vida, mesmo sem o contato direto. Agora, enquanto recusa polidamente apelos das contemporâneas, o velho só observa de longe a passagem do tempo e a passagem daqueles corpos viçosos em qualquer lugar público ou privado. Trocou laços de afetos, alguns sinceros, pelo prazer de olhar as meninas.

Aliás, a vida só não é incômoda por isso, embora traga culpa, pois não é um hobby, talvez seja um vício ou doença. Talvez apenas uma maneira de ver o mundo – ele não tem respostas, segue o fluxo. Aproveita o fato de ser quase invisível e filma discretamente suas meninas em cenários estratégicos: banheiros, academias de ginástica, motéis e bares.


À noite, ele revê as imagens com nostalgia e comportamento respeitoso. 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Tudo pronto para nada


Está tudo pronto pra nada, ele disse, sem mais, diante das coisas encaixotadas, velhos trastes de quarenta, cinquenta anos. Contou. Era a trigésima mudança em meio século, sempre para lugares piores, como a fase das quitinetes, em várias cidades, ou casas precárias, vazamentos, barulho, mofo e desconforto. Só para ter um endereço. Agora, são os pardais desafinados no começo da madrugada; sobre amanhã, ainda não sabe.

Tem sido assim. À medida que envelhece ganha menos, os aluguéis sobem e não há fiadores nem comprovante de renda. O próximo destino é o subúrbio – casa modesta, quarto e sala, vizinha à oficina mecânica. Perdeu dinheiro, agilidade, a memória para o vocabulário, os amigos bem situados e as mulheres. Quase não sai, embora mantenha uma agenda de atividades a não serem cumpridas.

Faz tempo que lamúrias carecem de valor literário porque na verdade não contêm imaginação – apenas reportagem do dia a dia, narração linear, treinamento para evitar a loucura, ou cair dentro dela, de vez. Banalidades copiadas em cadernos escolares, também embalados para a mudança, amanhã, as oito, numa Van. Inventário: guarda-roupas, livros, um pequeno sofá, colchão e álbuns de fotografia – “num deles apareço de índio”, me conta. “Carnaval de 1967”.

Ele agora organiza o ambiente para dormir a última noite neste ponto provisório. Afasta as caixas, se cobre com a colcha sobre um colchão nu. Louco para pegar no sonho e sonhar.

O sonho: ainda não dá para saber o que estava fazendo ali, naquele espaço, tentando entender, mergulhado em dúvidas, sem saber como mover-me entre tantos obstáculos, pois esteve ali na frente e voltou, tamanho o labirinto de equações sem respostas, coisas com nomes desconhecidos em nossa língua e em outras que aprendeu. Para que servem? Não vê serventia para cubos azulados e ocos, luzinhas de cores inclassificáveis, barulhos sem nexo, cheiro de algo fora da lembrança. Gostaria de descrever as paredes, mas não há paredes, embora esteja preso, buscando a saída. Não há saídas nem houve entrada. Só um amontoado de objetos inúteis ou de utilidade desconhecida.  Têm ou não têm peso? Flutuam e ele flutua junto, só sebe disso.

Aquilo – ou isto - deixou-o exausto e mais cansado ainda quando soube que o homem da Van não trouxe ajudante. Pegar no pesado, agora, depois do sonho, daria fraqueza nas pernas e vontade de voltar à cama.

- Segura dum lado q’eu seguro do outro – disse o homem da Van. Pensou em tudo, até em Sísifo e na inutilidade da mudança; pensou na morte, arrastando o guarda-roupa em direção ao veículo. Guarda-roupa-caixão, mais um ensaio de enterro, mais um salto no desconhecido. Carregaram com tudo dentro, até o terno de procurar emprego e não achar.

Nova casa. Móveis enfim arrumados e cama feita para o sonho das equações sem respostas.



quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Lançamento de Iberê Segundo Paulo no Facebook

A Editora Nhambiquara convida:

O livro “Iberê Segundo Paulo”, de Lula Falcão, está sendo lançado no Facebook. Nem precisa sair de casa. Confirme a “presença” e concorra a um exemplar. Dez serão sorteados, no mais longo lançamento da história da literatura mundial: já começou a só acaba à meia noite do dia 23/11/2013.


Quem quiser comprar o livro (R$ 35,00, com frete incluído), basta enviar um e-mail para contato@nhambiquara.com.br (com nome, endereço e e-mail) e o livro será enviado, com frete grátis. Só depois de receber a encomenda, o leitor depositará a grana. Tudo na base da confiança. Os dados da conta bancária seguirão por e-mail.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Dolores


Dolores,

Nem sei começar.  Nesses anos de separação ocorreu um monte de coisas fora do meu controle. Quase morri, estive à beira de vários precipícios e num deles pulei, um voo, no início, e logo a queda livre, duas pernas quebradas e aquela sensação de suicida fracassado: alívio de curta duração e em seguida o medo do ridículo, olhares de reprovação, mesmo dos amigos, agora afastados, por causa disso. Entrei na lista dos desequilibrados ou farsantes e uns disseram as maldades de sempre, “queria chamar a atenção”; outros foram mais cruéis, aceitando o diagnóstico de doido, dado por um médico especialista em transtornos, e ele perguntou se eu já havia tentado outras vezes e eu respondi que sim, há cinco anos, quando você foi embora. Besteira contar a verdade, pois certos segredos não devem ser repartidos com psiquiatras porque eles vão formando uma imagem negativa do paciente e despacham receitas cheias de substâncias que transformam a gente em outra pessoa. Virei outra pessoa e ao parar o tratamento, por contra própria, já não sabia quem eu era antes, esqueci. Fiquei com a mesma personalidade farmacêutica, mesmo sem os remédios, num mundo que não fede nem cheira, indiferente ao fato de você ter ido embora, Dolores, sem mais nem menos.


É o pior que pode acontecer. Quando voltei para casa naquele dia, ansioso para cair em seus braços, chorando minha demissão, deparei com uma mulher decepcionada, meu cargo era bom, por que perdi? Era a segunda vez em poucas horas, duas humilhações, o chefe e você, ambos me dispensaram. Numa circunstância dessas, um homem sai para beber, foi o que fiz, e só parei para me atirar lá de cima, daquele prédio grande em frente do mercado, e depois vieram os remédios, quase todos os males catalogados pela DSM, o 'Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais', livro conhecido como a "bíblia da psiquiatria", segundo li na Veja. Lia a Veja porque toda semana a revista anuncia a cura de uma doença a partir de um remédio revolucionário, inventado nos Estados Unidos, com lançamento previsto para o Brasil daqui a dois meses, pois já foi testado em humanos, com excelentes resultados. Mas o assunto não é este, Dolores, escrevo porque de repente passei a me sentir como antigamente, carente de sua presença, e pergunto se você vai voltar.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Iberê Segundo Paulo - Pague depois de ler

http://www.youtube.com/watch?v=rvWxVtkaTiQ 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A escada



Descia a escada, com cem páginas debaixo do braço, tropeçou no cadarço, sempre mal atado; caiu e morreu.

Duas horas antes: escrevo um livro de memórias; sou velho, espero que dê tempo de terminá-las. Pedi a um amigo para cuidar do preâmbulo. Caso algo me aconteça, morte ou perda de memória, ele se encarrega do começo do livro, informando como findei. O texto com início dele será a apresentação da autobiografia. Duas horas antes, dois pontos, também é ideia minha. Poderia ser anos antes, minutos antes, qualquer tempo – um truque barato de cinema. Isso aí depende dele. Só quero começar pelo fim.

Faço anotações: oitenta anos não é mole. Com oitenta anos, já vimos quase tudo e não lembramos quase nada. Aposto em quase nada. Cheguei aqui insatisfeito, querendo mais, umas linhas a mais, pelo menos, porque no meu caso só resta descrever. Não há vida, na prática, só um velho sentado, escrevendo o passado, tentando uma vaguinha na posteridade. A vaidade vai até o fim e queremos ultrapassar o fim sem perder a importância. Deixar uma marca.

...


Tonturas são normais, velhas conhecidas, e sei lidar com elas. Sei lidar também com meu corpo estranho há muito tempo. Tenho sintomas clássicos de doenças terríveis, mas não vou ao médico, nunca fui nas últimas sete décadas. Então surgem manchas, tosses, gânglios linfáticos, uma bolota sob a pele que dói e se move. Depois tudo some sem deixar sinais. Não ligo nem procuro respostas. Pior seria um diagnóstico apressado, capaz de matar com a rapidez de uma insidiosa moléstia, como se dizia antigamente. A cara solene do médico, seu olhar superior, determinante, dando um prazo de seis meses ou menos.


Morre-se ali, no diagnóstico, e todos os outros medos são superados, inclusive o pânico de descer escadas como se estivesse descendo de costas ou de olhos fechados.  

domingo, 8 de setembro de 2013

Lançamento de Iberê Segundo Paulo no Rio

Iberê Segundo Paulo: a relação entre um pastor evangélico e um
escritor alcoólatra num romance carregado de ação, sexo, drogas e dinheiro

Os personagens estão em submundos opostos e se encontram logo no começo de Iberê Segundo Paulo (Editora Nhambiquara)”, romance de Lula Falcão, a ser lançado na Livraria Argumento, dia 09-09, depois de lançamento em São Paulo, Paraty (Flip) e Recife. O pastor Iberê Valdecarlos do Nascimento e o escritor fracassado e alcoólatra Paulo iniciam uma sociedade inusitada, mas verossímil, ao longo de 204 páginas de ação, sexo, drogas e reflexões sobre a culpa e a própria literatura.

Aos poucos, Paulo, um ateu, parece disposto a vender a alma a Deus ou ao Diabo, sem predileção por um ou outro, apenas para cumprir o objetivo de escrever um livro. Enquanto seu parceiro Iberê tem delírios religiosos estranhos, a ponto de verter sangue por todos os poros, e ao mesmo tempo mantém duvidosas ligações com os capos da igreja nos Estados Unidos e a bancada evangélica na Câmara dos Deputados. Qualquer semelhança com fatos atuais é mera coincidência, “embora o noticiário esteja cheio de Iberês, que se apossaram da realidade como falso piedosos cristãos”, como observa o escritor e editor João Bosco A. Souza.

Além de escrever seu próprio romance, Paulo também se dispõe a redigir um apêndice da Bíblia para a igreja de Iberê, incluindo na história filósofos pessimistas e especialmente Dante. Nesse ritmo, senso de humor refinado ou delírio patológico os une – além de problemas judiciais - e aí Iberê fica ainda mais irresistível. Porque ganha leitores além dos fiéis da praça e da igreja. Todos se convertem ao texto que parece uma massa de milfolhas e o recheio é uma trama que engana. “Quem é criação de quem? Iberê inventou Paulo ou foi o contrário?”, observa a jornalista Christiane Marcondes Brito, na orelha da obra. “Você vai rir, vai se identificar, vai querer chorar ou implorar a Paulo para suavizar no castigo aos labirínticos personagens, pois eles estão todos enredados, mais do que se pensa, e o gostoso disso tudo é que existe um final apoteótico (embora a certa altura pareça que o autor não dará conta de tanta ponta sem nó)”.

De certa forma, o livro é também um “book-movie”, pois seus personagens, por problemas existenciais e policiais, percorrem um roteiro que começa em São Paulo e inclui Maceió, Trenton (EUA), Nova York, Recife e Palmeira dos Índios (AL), terra da família de Iberê e do escritor preferido de Paulo, Graciliano Ramos.

O autor

Lula Falcão nasceu em Santana do Ipanema (AL), foi criado no Recife e está radicado em São Paulo desde 1988. É jornalista, com passagem nas principais redações do País, e estreou na literatura com o livro Todo dia me atiro do Térreo. É também coautor de Frevo, 100 anos de folia. Iberê, segundo Paulo é o seu primeiro romance. Mantém o blog www.lulafalcao.com.br em que publica contos e crônicas.

Serviço
Lançamento dia 09-09
A partir da 19h00
Livraria Argumento
Rua Dias Ferreira, 417 - Leblon
Contato@nhambiquara.com.br

livrotododia@gmail.com

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Papéis



  1. Na adolescência eu costumava escrever cartas de suicida apenas por diversão e treino para virar escritor. Levava o ofício a sério, a ponto de considerar tais despedidas um gênero literário - tão importante quanto o romance e o conto. A vantagem era não precisar morrer por essas linhas de falsas infelicidades, sofrimentos inventados e culpados sem culpa. Assim, vingava-me da falta de sentido da vida que, à época, parecia cheia de sentido e alumbramento. Era o tempo do existencialismo e eu não queria ficar por fora. Durante anos, criei toda sorte de razões para dar cabo à vida: doenças sem cura, desilusões amorosas, dívidas impagáveis e revolta contra a opressão doméstica. Mais tarde, quando me tornei escritor de médio alcance, torturas existenciais passaram a me atormentar de verdade. Mas aí as cartas de suicida tinham perdido a graça. Até elas.

  1. Escrevo todos os dias. É um vício. Às vezes só um parágrafo, às vezes cinco páginas. A maioria dos textos vai para uma pasta, chamada purgatório, mas pouca coisa se aproveita por inteiro, rende mais como peças de reposição. Pode estar lá, por exemplo, uma frase para outra história, pedaços de falas e outras tralhas. Um trecho de diálogo pode servir para um viajante, uma velha solitária ou um político derrotado.

  1. Enrolado à perfeição como cigarro de fábrica. Carburação exata, queimando devagar e fornecendo muito. Bastou a metade. Tudo funciona bem e não precisamos mais sacrificar nossas vidas em dúvidas e desilusões.



domingo, 25 de agosto de 2013

A ressurreição I



Quando acordei senti a mão pesada em minha testa, tomando a temperatura. Não tinha febre, acho, apenas via o clarão cegando os olhos, luz estourada e, aos poucos, a imagem ainda em formação: quarto branco de hospital. Cena batida, eu pensei, deixando de lado as razões de estar ali. Logo viria alguém e veio. “Você esteve morto”, disse a enfermeira ou médica, buscando minha ajuda para entender o que ocorrera antes e durante o apagamento. Nenhum flash, memória zero, talvez eu estivesse nascendo naquele momento, mais ou menos aos quarenta anos, pois não existia um tempo anterior. Na verdade, ela sabia sobre mim tanto quando eu.

Notei certa frustração em minha interlocutora de branco. Parecia mais interessada em vida após a morte do que em minha identidade, sem contar a ressurreição, caso pouco corriqueiro, por sinal. Se estive morto estaria vindo do nada e nada teria a acrescentar. A preocupação era outra, mais urgente: eu era um ser com personalidade, convicções firmes, ideias sobre a vida; faltavam fatos em minhas lembranças. Faltava-me a própria lembrança. Também não vinha à mente minha imagem; não intuía como eu era ao espelho.

Em termos médicos, nada de anormal na volta à vida, informou a mulher de branco. Exames ok. Menos eu. Comecei enfim a ter recordações, incômodas, e nelas apareço como personagens de livros que li, sentindo-me na pele deles; eu e meu nariz adunco. Todo romance tem alguém de nariz adunco. Sou perfeito cavalheiro no século XIX e perfeito canalha em história mais recente, mas canalha com classe e tecnologia, especialista em golpes financeiros, ladrão roubando de ladrão, ou seja, o mocinho. Ela conhecia alguns textos, cujas falas recitei. No entanto, preferiu tratar o caso como delírio, afastando as chances de metalinguagem. Insisti que não era uma coisa nem outra. Eu sentia dores físicas. Fui apedrejado em Jerusalém e ferido na praia de Omaha, para citar dois exemplos. Parece ter sido ontem ou há minutos, está escrito.

O problema foi apresentado, vamos ao conflito, em busca de solução satisfatória, conforme ensinam os roteiristas. Eu estava ali, indefeso, tentando encaixar o episódio nas histórias literárias. Nada. Pedi então para saberem se eu existia para o mundo dos vivos. Tiraram fotos, impressões digitais, sangue e em seguida checaram em todas as instâncias. Nada. A partir daí levei em conta a possibilidade de estar morto, ainda, para sempre. Além de mim, só havia uma pessoa na sala, a mulher de branco. Branco=fantasma. Só que ela não combinava com enredo de terror - era corada e viçosa, pernas capazes de distrair a atenção de um zumbi amnésico.

Não é isso. Eu e os personagens que representei nunca acreditamos em milagres. Estava vivo, sim, depois de um período em estado de coma. Nessa hora, a mulher interrompeu:

- “Não era coma; era morte mesmo”.

- Quando tempo? – perguntei
- Não sei ao certo, não estava de serviço nesse dia. Ouvi falar em seis meses. Ninguém sabe seu nome nem de onde veio.

Meu Deus, bati o recorde. O único caso conhecido, mas nunca comprovado, não passou de três dias e até hoje é notícia. Estava com um nó difícil de desatar. Talvez o longo período morto tenha deixado sequelas, como a perda da memória, embrulhando minha cabeça em páginas de Graciliano. Estranho não ter ficado podre. Estranho não estar tão preocupado com minha situação delicada. Adiantou a moça que eu havia sido congelado para um estudo e, de repente, no meio de uma conversa de médicos, levantei da mesa cirúrgica e pedi água. Não me lembrava da mini ressurreição, anterior a esta. Ela, a mulher de branco, era única referência real da memória.

Por isso, as dúvidas voltaram, ainda sem o medo que a ocasião merecia. Não era um indigente, pelo menos não me sentia como tal, nem me sinto, agora, contando minha história. Havia uma aura aristocrática me cercando neste quarto e continuo nele, no presente momento, com sinais vitais preservados. O coração bate, o sangue corre, os olhos exploram o teto e, vez por outra, o corpo da médica. Fora disso, nada (Continua).



segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Iberê Segundo Paulo - Onde comprar


O livro Iberê Segundo Paulo pode ser encontrado pode ser encontrado nas livrarias e outros pontos de vendas e também pode ser pedido por e-mail. contato@nhambiquara.com.br.  Basta enviar o endereço e em seguida depositar na conta da editora. Sem frete. Preço: R$ 39,00.

Pontos de venda

Livraria Cultura (todo o Brasil)

Loja do Bispo - Rua Dr. Mello Alves, 348 Jardins São Paulo SP - CEP: 01417-010
Tel.: +55 (11) 3064-8673

Livraria Jaqueira  - Rua Antenor Navarro, 138 Jaqueira - Recife - PE
Tel.: 81 3265.9455


Mercearia São Pedro - Rua Rodésia, 34 -Vila Madalena - São Paulo

Livraria Argumento - Leblon - Rua Dia Fereira, 417  - Rio
Livraria Argumento - Barra - Avenida da América, 7777 - Rio

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Solidão a dois

Doeu-me o final da apresentação, quando ela, em lágrimas, confessou o desejo de nos abandonar para sempre. Era teatro, claro, iria mesmo embora de qualquer jeito, sem alarde, mas resolveu montar seu quadro diante do público. Conosco – seus dois amantes – mantinha apenas uma relação protocolar, nos últimos meses; em casa criava conflito só para afastar o tédio. Agora estava lá, no palco, contando à plateia nossa convivência na mesma casa, os três, dois caras e uma cantora, e anunciando também o encerramento do caso.  Queria ser a primeira a deixar dois homens no mesmo momento e mesma cena, assistida por fregueses do velho clube de jazz. Os dois abandonados esperavam alguma coisa má - não nessa forma e conteúdo.

No mundo polígamo quem está em maioria nem sempre ganha, aliás, quase sempre perde. Estávamos ali para isso. Receber o que restou de cinco anos de vida a três. Ela parecia tranquila, como estivesse informando a próxima música. Tal comportamento nos deixou ainda mais desgraçados e sem forças de reação. Pensei em ficar enfurecido, mas desisti. Não havia impulso e parei na zona intermediária da decepção. Meu sócio nessa empreitada ficou assustado, sem outro sentimento classificável além do medo. 

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Escritores miseráveis



Os personagens devem uns aos outros, especialmente dinheiro, e antes do meio da história há uma crise de liquidez, uma pobreza extrema, despejos, fugas, lares desfeitos. Os mais velhos e doentes morrem sem repercussão. Outros se viciam em drogas e bebida até deixarem de ser o que são e rumam para o desfecho quase desfalecidos. Alguns pedem esmola em parágrafos inteiros, justificando a penúria com longas citações filosóficas, tomando também de empréstimo trechos de Ivan Turgenyev. Agora, estão reunidos no centro da cidade, numa convenção literária carregada de niilismo. Em Otília, o corpo dói inteiro, provavelmente um tumor. Alberto perdeu um braço. Aloísio começou a urinar sangue. Manoela – outrora a musa do grupo - está tuberculosa.

Tanto sofrimento e ninguém chora, não acredita na compaixão do senhor, não crê em deus - sempre escrito em minúsculas, em papel de embrulho. Sem a Divina Providência, uma injeção de recursos, via Lei de Incentivos Fiscais, seria uma solução. Todos precisam de um projeto. Sem projeto não há vida para os escritores miseráveis. O problema é que as roupas esfarrapadas dificultam a captação de recursos. Quando chegam às empresas, atrás de patrocínio, são expulsos por seguranças.

Os que vivem um pouco melhor, com lugar para morar, também estão ameaçados. Dividem casas velhas com miseráveis iletrados e, de repente, descobrem que não são bem-vindos no lugar, têm dois meses para arrumar outro canto, e eles também terminam se juntando ao seminário de rua, a Flip dos excluídos, para discutir a obra de algum desgraçado da mesma espécie, de Lima Barreto a Ericsson Luna.

Muitos deles dormem em qualquer brecha, sobre caixas de exemplares de livros encalhados. Investiram tudo na edição, mas na hora de colocar o produto nas livrarias esbarraram em distribuidores, baixa margem de lucro e desprezo dos cadernos de cultura. Há opúsculos de gráfica rápida, mas tais publicações nunca chegaram às livrarias e nunca chegarão. Se boas histórias estão ali, não interessa; interessa a apresentação, o nome, nem precisa ser escritor. Além disso, a escrita miserável não levanta a autoestima do leitor. Pelo contrário, só há lamentos, reclamações e pessimismo nos textos escolhidos de Assis da Mata e nos poemas de Maria Fontela. Os dois tinham algum dinheiro, antes da vida literária, e nem mesmo o papel escrito a lápis hoje é suficiente. Então, apagam e escrevem novos textos, no mesmo papel, como num palimpsesto. 

Ainda bem que neste ambiente insalubre todos se respeitam, sem contar os diversos casos de arrebatamento, aqueles em que o sujeito é capaz de usar expressões exclamativas do tipo “que saber jurídico!” ou “quanta erudição!”, ao referir-se ao mais respeitado de seus pares, também um pária, mas capaz de ombrear com todos os imortais da academia. Há uma liturgia, portanto. Apenas quando é hora de catar coisas no lixo é que essa convivência perde força, mas o primitivismo de atirar-se aos rejeitos pode resultar em anotações espirituosas e analíticas feitas por gente realmente capaz de transcrever o lixo para a literatura e vice-versa.

Pobreza em estado puro, recheada de prosa articulada. Eles formam uma espécie de coletivo – a Irmandade dos Miseráveis de Letras (IML) * -, mas cada um com sua dor, escrevendo histórias sob e sobre marquises e cobertores velhos. A literatura miserável surge à margem das editoras, das redes de livrarias e não é encontrada em versão digital. Como negócio não tem futuro. Ali ninguém tem futuro nem está preocupado com isso.   


*A IML foi criada, no mundo da ficção, pelo contista Cláudio Parreira. 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O amor e outras doenças



O que antes a gente chamava de hábito, passatempo, hobby, hoje é distúrbio, vício, transtorno e síndrome. Para todos esses casos há uma infinidade de remédios, alimentando o grande ciclo da indústria farmacêutica. Criar uma doença para um medicamento, eis o que deve estar acontecendo. Agora, ninguém pode repetir nada e logo um monte psiquiatras cai em cima, cada um com um disgnóstico, e cada um com um comprimido diferente. Esses comprimidos custam muito caro.

Sem cair no panfleto ou na teoria da conspiração – e correndo o risco de replicar milhares de blogs pelo mundo - desconfio que os fabricantes dos medicamentos pensam muito parecido com os de shampoo e sua imensa variedade de compostos para cada tipo de cabelo. Ou o contrário: tipos novos de cabelos para novos compostos. Nos primórdios do shampoo, tinha para cabelos secos e oleosos. Depois foram se multiplicando com a criação de novas espécies de conformação capilar, passando dos problemáticos arrepiados e tristonhos aos que dispensariam shampoo - os lindos e maravilhosos.

Do cabelo para a doença, vejam só: se o cara tinha um costume antigo de estalar os dedos ou mau gosto de mascar um palito de dentes depois das refeições já pode ser enquadrado como portador de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Mas há gradações, características, peculiaridades, remetendo a conclusão que só uma mistura de paroxetina, dibenzotiazepina, cloridrato de duloxetina podem resolver o problema. Se o receituário falhar, há ainda uma droga nova nos Estados Unidos capaz de organizar o funcionamento dos outros remédios, tornando-os mais produtivos e eficientes. O resultado desejado é que o paciente não fique alegre nem triste. Fica com aquela cara de medicado.


Depois do Prozac – a Coca-Cola dos tranquilizantes nos anos de 1990 – germinou uma imensa gama de novos remédios para novos transtornos e depressões. Nem são tarja preta. O efeito começa a aparecer em uma ou duas semanas. Em sua mais recente versão, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais dos EUA (DSM)traz 300 patologias, não deixando espaço para uma pessoa ser considerada normal. Nessa lista, por exemplo, entra até o amor, capaz de provocar insônia, taquicardia, tensão muscular e alternância de períodos de letargia e de intensa atividade.

sábado, 29 de junho de 2013

Tia Lucrécia



Eu não precisava de conselho, só de ajuda, mas ela tem essa mania de lição de moral, não vive sem dizer é assim ou assado, como a vida deve seguir, “pois sua casa está imunda, não sei como você consegue morar ali”, e mais outras tantas orientações sobre luzes deixadas acesas, minha vida, descuido com a roupa, gastos desnecessários etc, porque dinheiro para emprestar ela não tinha ou dizia não ter. Só faltou jogar na minha cara que estava me ensinando a pescar, e eu precisando do peixe, imediatamente, aliás, do dinheiro, uma vez que estava numa merda sem tamanho, naquele momento sem saída, cheio de credores atravessando a rua, justamente por isso eu queria uma providência, não um manual de autoajuda.

Parece aquela lenga-lenga dos três mil rublos dos Irmãos Karamazov, cujo autor tem sido citado em demasia neste espaço, e minha situação parece às vezes com as de Ivan e Mitia, oscilando entre um e outro. Quem já leu, sabe como é; quem não leu trate de ler. Mas só queria dizer a ela que não tenho onde cair morto, ando com uma mão atrás outra na frente, perdi o emprego e a TV a cabo. Não morro de fome graças às bocas livres desta cidade. Só sou convidado porque minto, invento projetos mirabolantes e conto que vou a Paris na próxima semana. Minhas idas a Paris, cara Lucrécia, ocorrem da seguinte maneira: fico em casa, trancado, comendo macarrão, macarrão solo, só água e massa, e lendo e relendo. Não atendo telefone. Depois, dou de blasé. “E aí, como foi Paris?”, perguntam. “Legal”, eu respondo, acrescentando as tradicionais queixas contra os franceses.

Então, recorro a ela para tomar um pequeno empréstimo, dinheiro não lhe falta, e ouço um discurso enorme, cheio de restrições ao meu jeito de ser e à minha falta de planejamento estratégico. Não fala baixo, grita em negrito: “você precisa tomar jeito”. Querida, não sou uma empresa, apenas vivo como posso e como não posso, de acordo com as circunstâncias e em desacordo também, depende do momento. Faço merda, ela está cansada de saber, mas a merda está feita, não tem retorno; essa é a característica da merda, em todos os sentidos. Não quero é ouvir sermão, passo mal. Nem dicas de organização. Planilha Excel para os gastos? Já fiz. Saí com a moça para jantar e esbanjei, estourei o cartão e desatualizei a planilha. Não, não sou perdulário. Foi um impulso - e ela tinha uns peitinhos lindos. Fosse um empresário bem-sucedido valeria o investimento. A verdade é que sou pobre, sem grana, mas inteiramente construído para o mundo dos ricos. Todo aparelhado para gastar com o bom e o melhor; mas aí, cadê dinheiro?


Tento explicar isso há séculos à tia Lucrécia. Há pessoas que nascem em berço de ouro e sabem como gastar o dinheiro. Nasci num fim de mundo sem ricos, mas alguma coisa criou-se em minha cabeça e aos poucos, mesmo naquele lugar desinformado, comecei a sonhar com vinhos italianos, carros esporte, livros caros, mulheres ainda mais dispendiosas, dessas de jantares com trufa, hotéis cinco estrelas e Victorias secrets. A minha passeou pelo saguão. Parecia um filme: as paredes tinham uma coloração amarela ouro e não remetia à opulência kitsch. Era um ambiente deslumbrante e despojado ao mesmo tempo, sem bradulaques barrocos - olha como entendo de arte, tia – e havia ainda uma escadaria gigantesca, por onde os donos da casa desciam sem segurar no corrimão. Mas não é sobre isso que eu queria falar. Volto à grana. Não é a primeira vez. Ela já me salvou em outras ocasiões, piores e melhores do que a atual. O problema é o preâmbulo. Para não sair daqui de mãos vazias, ouço, engulo pequenos insultos, dedico aquele tempo para ser humilhado. Quando saio, sem as mãos vazias, dou por finda as culpas, vou à vida. Tia Lucrécia assina o cheque com certa contrariedade, entre resmungos, mas quando desço, vejo que ela me olha pela janela, pensativa e quase sorridente, alisando com leveza seus escorridos cabelos brancos. As pessoas mudam de um parágrafo para outro. No final, ela aposta suas economias em minha minha vida desregrada e dispersa. Saí de lá emocionado com a pureza das relações familiares e com meu cheque no bolso.       

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Lançamento de Iberê Segundo Paulo em Olinda


Os personagens estão em submundos opostos e se encontram logo no começo de Iberê Segundo Paulo (Editora Nhambiquara)”, romance de Lula Falcão a ser lançado no dia 10 de agosto, em Olinda, depois de lançamentos em São Paulo, Paraty (Flip) e Recife. 


O pastor Iberê Valdecarlos do Nascimento e o escritor fracassado e alcoólatra Paulo iniciam uma sociedade inusitada, mas verossímil, ao longo de 204 páginas de ação, sexo, drogas e reflexões sobre a culpa e a própria literatura. Aos poucos, Paulo, um ateu, parece disposto a vender a alma a Deus ou ao Diabo, sem predileção por um ou outro, apenas para cumprir o objetivo de escrever um livro. Enquanto seu parceiro Iberê tem delírios religiosos estranhos, a ponto de verter sangue por todos os poros, e ao mesmo tempo mantém duvidosas ligações com os capos da igreja nos Estados Unidos e a bancada evangélica na Câmara dos Deputados. Qualquer semelhança com fatos atuais é mera coincidência, “embora o noticiário esteja cheio de Iberês, que se apossaram da realidade como falso piedosos cristãos”, como observa o escritor e editor João Bosco A. Souza.

Além de escrever seu próprio romance, Paulo também se dispõe a redigir um apêndice da Bíblia para a igreja de Iberê, incluindo na história filósofos pessimistas e especialmente Dante. Nesse ritmo, senso de humor refinado ou delírio patológico os une – além de problemas judiciais - e aí Iberê fica ainda mais irresistível. Porque ganha leitores além dos fiéis da praça e da igreja. Todos se convertem ao texto que parece uma massa de mil-folhas e o o recheio é uma trama que engana. “Quem é criação de quem? Iberê inventou Paulo ou foi o contrário?”, observa a jornalista Christiane Marcondes Brito, na orelha da obra. “Você vai rir, vai se identificar, vai querer chorar ou implorar a Paulo para suavizar no castigo aos labirínticos personagens, pois eles estão todos enredados, mais do que se pensa, e o gostoso disso tudo é que existe um final apoteótico (embora a certa altura pareça que o autor não dará conta de tanta ponta sem nó)”.

De certa forma, o livro é também um “book-movie”, pois seus personagens, por problemas existenciais e policiais, percorrem um roteiro que começa em São Paulo e inclui Maceió, Trenton (EUA), Nova York, Recife e Palmeira dos Índios (AL), terra da família de Iberê e do escritor preferido de Paulo, Graciliano Ramos.

O autor

Lula Falcão nasceu em Santana do Ipanema (AL), foi criado no Recife e está radicado em São Paulo desde 1988. É jornalista, com passagem nas principais redações do País, e estreou na literatura com o livro Todo dia me atiro do Térreo. É também coautor de Frevo, 100 anos de folia. Iberê, segundo Paulo é o seu primeiro romance. Mantém o blog www.lulafalcao.com.br em que publica contos e crônicas.



Serviço
Dia 10 de agosto de 2013
Solar da Marquesa
Av. Dr. Joaquim Nabuco, 5, Varadouro - Olinda

A partir das 18h


quarta-feira, 19 de junho de 2013

O conformista bairrista



Eu tenho certas ideias, mas não quero expô-las em público, pois não sei se estão corretas, não sou do tipo capaz de ir até o fim numa discussão, sempre cedo e, mesmo humilhado, dou por encerrada a conversa, mudo de assunto e no último caso corro para o banheiro. Com política, a situação se agrava, e se for num bar se agrava ainda mais, por causa do álcool, e nunca deixou de se agravar, desde ou antes das tavernas de Dostoiévski, e nesse ponto o escritor explica bem o caso ao lembrar que as pessoas não têm apenas o costume e o gosto de divulgar aquilo que pensam, mesmo as coisas mais sórdidas, os maiores absurdos; querem a imediata concordância.

Então eu penso que não adianta. Porque se não for assim, da maneira deles, os cheios de certezas entram em fúria e é possível que quebrem não só as tavernas de São Petersburgo, mas também a cara dos divergentes. Tamanha paixão pelas ideias não é novidade para nós. As brigas se repetem nos bares do meu bairro, todos os dias, por causa das próximas eleições e de vez em quando em relação à existência de Deus e à origem do homem a partir do macaco ou de Adão e Eva. Por isso apenas, bares são reduzidos a destroços, cadeiras voam nas madrugadas, o sangue escorre nas calçadas. É um bairro atípico, reconheço, e dadas as características do lugar o melhor que se faz é ficar calado ou juntar-se discretamente ao grupo majoritário. Na hora da briga, costumo fazer aquele movimento dos lutadores de boxe, estudando o adversário, mas só estudando, deixo a prática para quem se envolveu mais apaixonadamente na discussão. Por que não fico em casa? Ora, o pessoal é amigo, conheço desde criança, nasci aqui, embora reconheça o medo de perder alguma parte do corpo nessas escaramuças. Sou ligado a um lado, discretamente, mais por amizade, menos por alinhamento ideológico.

A luta envolve homens e mulheres, velhos e jovens e uma noite bem agitada é medida pela quantidade de feridos que dá entrada no pronto socorro. Não há armas, ainda bem, embora duas mortes tenham sido registradas no mês passado, mas ambas por enfarte; eram fumantes e conhecidos pelo palavreado em voga nos anos 50, como “a nação não pode suportar tamanha afronta”. Pois é, vivemos desse jeito, em eterna conflagração entre grupos de partidos políticos, uns contra o governo, outros a favor, além dos ateus x religiosos, mas à luz do sol todos se respeitam. Em nenhum outro bairro é assim. O mais grave é que os moradores acham natural, como uma tradição, une façon d'être, o espírito do nosso povo etc.

Tenho sobrevido sem arranhões nesse pedaço da cidade em guerra filosófica. Sim, os assuntos são tratados no mais alto nível, a princípio, e só depois desanda em esculambração generalizada. Aí, uma simples citação de Voltaire ou Renan Calheiros, até mesmo uma citação de Renan Calheiros, pode ser motivo de desavença e troca de socos. Ainda dizem, depois disso tudo, que somos politizados. Fico na minha, mudo, sem balançar a cabeça em qualquer sentido, mas na verdade acho tudo isso muito exagerado. Poderia ser igual ao bairro vizinho, onde dia de eleição parece dia normal, não tem gente de perna quebrada e sem dentes, como aqui teve, no último pleito.

Minha neutralidade é notada como covardia. Não ligo. Guardo minhas ideias, solto umas aprovações discretas para minha turma e seguro as coisas mais sombrias para meu próprio consumo. Nem digo que não vale a pena correr risco físico por causa de uma opinião porque já se trata de um posicionamento político, uma declaração de fuga do debate, e portanto sujeita a agressão.


Tenho todas as críticas possíveis a esse comportamento classicamente provinciano, mas no fundo da alma vem uma onda dizendo que, no fundo da alma, eu gosto daqui. Quem é do bairro tem isso no sangue, ninguém sabe explicar, e mesmo que eu tenha menos, sou apenas observador, vejo um mundo fervendo na minha frente, pessoas vivas e em movimento, paixões incontroláveis e cadeiras voando na madrugada.        

sábado, 15 de junho de 2013

Coisas diferentes




Daqui a vinte anos ninguém vai encarar um romance ou mesmo uma novela, talvez nem um conto. A previsão do escritor Philip Roth contempla apenas a sobrevivência de pequenos textos, posts, recados e besteiras como as que seguem abaixo:

Personagens

A criação de personagens em cativeiro tem dado muito trabalho e nenhum lucro. Todos cheios de manias, crenças complicadas e diálogos enormes, esses animais ocupam muito espaço e têm péssima rentabilidade. Além disso, quando se misturam, no banho de sol, também misturam seus enredos, uns enveredando pela história dos outros, até chegarem a um embaralhamento sem perspectiva de ponto final.

Carreiras

Às vésperas de completar 19 anos, Ana Lúcia tomou uma decisão radical: “quero ser puta”. A escolha, fria e pragmática, estava destituída de carga moral. Houve apenas uma consulta ao ranking das melhores carreiras e ela descobriu uma mudança quase anual da atividade da moda - a mais financeiramente rentável e facilmente absorvida pelo mercado de trabalho. Se escolhesse Nanotecnologia, no ano que vem poderia estar ultrapassada pelo Techno Urbanismo ou a Psicologia de Vidas Futuras. Já a prostituição vem se mantendo estável há séculos.

Imprensa

A revista “Roberta” trata de assuntos femininos, tipo Cláudia, mas existe uma mulher de verdade no comando da redação: a própria Roberta. Daí o nome da publicação. Roberta é filha do dono da editora, Roberto, e está no terceiro ano de jornalismo. Roberta é tratada por “Rô” pelas editoras assistentes, suas amigas Renata (Rê) e Fernanda (Fê). A imprensa não era sua primeira opção. A primeira era moda. Por isso, “Roberta” traz imensas matérias sobre roupas. Depois de moda, Roberta gosta de frequentar a hípica e tomar tequila. Os textos da revistas são ruins e Roberta não está em condições de melhorá-los, pois sempre chega ao trabalho atrasada, de ressaca, e logo quer ir embora, arrastando as assistentes. De vez em quando, Roberto, o pai, lembra que a “Roberta” está no vermelho, mas ela faz muxoxo, não dá a menor bola, tem mais o que fazer, hoje é sexta-feira.

Comportamento

Assim, reticente, sempre, nada a acrescentar, e se tinha guardava pra si, escondia o jogo, a danada. Meio perigosa, até, eu achava, às vezes, embora fosse bonitinha, aliás, linda, não vou mentir. Estragava a avaliação, esse jeitinho dela, cheio de vírgulas, não-me toques, dissimulações. Mesmo assim resolvi ir em frente, a coisa foi ficando complicada. Não seria o primeiro a cair na armadilha, nem o último, pois decorreram dois meses e quem avisa amigo é, ele avisou, mas eu não esperava que fosse com ele e foi. Ana Lúcia pegou mais um, meu melhor amigo. Mas ele avisou.

Lançamento


Para variar, lembro o lançamento do romance “Iberê Segundo Paulo” (Editora Nhambiquara), dia 17, na Mercearia São Pedro – Rua Rodésia 34. A partir das 19h30. Aproveitem. Só temos vinte anos pela frente.      

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Promoção por tempo ilimitado





O livro “Iberê Segundo Paulo”, editora Nhambiquara, R$ 40.00 (incluindo frete), está à venda aqui. Quem ainda não tem seu exemplar pode adquiri-lo da forma mais confortável possível: pede pelo email contato@nhambiquara.com.br  faz o depósito na conta abaixo e ele será enviado pelo correio. Mande o endereço no e-mail.



Banco Santander 033
Agencia 4337 conta 13000082-5
CNPJ  02.092.545/0001-09

João Bosco Alves de Sousa

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Debate: O paradoxo das paquitas



As paquitas viraram senhoras bonitas, mas os lolitianos continuam a preferi-las como antigamente. As próprias também despejam um pouco de nostalgia teen em sua página no Facebook. O certo e inelutável é que as ninfetas da Xuxa, 50, não são mais ninfetas. Funcionam, no caso presente, como uma unidade de medição do tempo para a turma dos anos 80 e 90 do século passado. Muita gente envelheceu junto com elas - alguns envelheceram mal. Sei que é um preâmbulo meio enviesado, mas seus significados talvez surjam no decorrer do debate envolvendo dois mestres da Teoria da Vida, ambos desconhecidos do grande público, embora respeitadíssimos entre seus pares. Aliás, a tese de um dos contendores chama-se “O paradoxo das Paquitas”. Mas vamos ao que antigamente chamávamos de matéria e hoje é conhecido como “meu texto”. O conteúdo é basicamente um debate entre os dois professores.

Ao referir-se ao seu paradoxo das paquitas, Afrísio Assumpção tratou o processo de envelhecimento como um defeito da natureza, e se cremos em Deus, devemos pelo menos considerar que Ele poderia ter pensado numa solução melhor. Segundo o mestre, a concepção de “natureza perfeita” é apenas o caos que organizamos em nossas cabeças para fins de sobrevivência. A grande pergunta do professor: por que o material se desgasta, a vida humana se vai tão rápido, quando poderia ser feita de substância mais resistência ao tempo e às intempéries? Pois sendo diferente, na opinião de Asumpção, as paquitas manteriam seus shortinhos por alguns milhões de anos, e seus fãs, hoje barrigudos e carecas, continuariam a exibir corpos enxutos e saudáveis até o fim dos tempos.

Viveriam assim por toda a vida, por muitos mais anos, e morreriam de repente, jovens na aparência e milenares na idade. Sem doenças e, portanto, sem necessidade de plano de saúde. Passariam por todas as reviravoltas da história, mudariam muitas vezes de opinião, trocariam de costumes e valores e, acima de tudo, experimentariam as sensações que não cabem no modelo atual de vida. Nesse ambiente ideal - sempre na opinião do professor, deixo claro -, uma pessoa poderia iniciar seu ciclo como analfabeto e fracassado e chegar ao meio da existência como reitor da USP, presidente da República ou papa. Depois poderia abandonar o papado, meter-se em aventuras mundo afora, e séculos depois reiniciar a lida burguesa, com doutorado em Havard e negócios na Bolsa.

Então, surge outro emérito professor, Abdias Outeiro, da mesma área, para discordar. Meio niilista, levanta a questão do tédio. Seria uma pasmaceira aturar as mesmas pessoas durante séculos, ouvindo as mesmas conversas, porque o povo não muda assim com tanta facilidade de um milênio para outro. Se o cara não mudou até os trinta anos não vai mudar nunca. Abdias chamou essa discussão de “ultrapassada”, quase uma não problema, como diria Kant, e continuou citando, desta vez Ivan Karamázov, que já teve esse tipo de conversa com o diabo.

O professor Assumpção se contrapôs fortemente. Afirmou, com fúria acadêmica, serem a sua tese e temas assemelhados as grandes questões da humanidade. “É o ser ou não ser, o tudo e o nada, a vida e morte”, discursou, de forma bastante convincente para a pequena e atenta plateia. Para ele, o Paradoxo das Paquitas pode ser apresentado até mesmo em forma de equações matemáticas. Antes que Outeiro levantasse um grande problema, a superpopulação – um casal poderia ter alguns bilhões de filhos -, Assumpção esboçou seu projeto de mobilidade interplanetária e salientou que, em alguns milênios, teríamos o universo inteiro para morar, com mais opções e preços em conta. “Hoje é muito caro viver nas Terra”, observou. “No futuro teremos planetas sem aluguéis e imposto de renda”.

Mas a grande questão de Outeiro era outra. Morre-se de qualquer jeito, daqui a pouco ou daqui a mil trilhões de anos elevado à nona potência. Morreu, a não acreditarmos em Deus, é o fim, acabou, o tempo perde o sentido. Tudo perde o sentido. Sem contar que O falecido deixaria saudades ainda desconhecidas entre velhos amigos de quatro, cinco, seis milhões de anos. “Loucura!”, exclamou Outeiro. Seria melhor deixar como está. Mesmo porque não temos tecnologia para pôr em prática as ideias do douto colega. Foi uma piada, uma gracinha para desanuviar o ambiente, mas o professor Assumpção não gostou, acho que do “douto colega”, meio irônico, sei lá, e quase gritou que suas ponderações se davam no campo do pensamento e, se cremos em Deus, Ele nos ouvirá e mudará de ideia. Para dar o nó em sua intervenção, também recorreu a Dostoiévski, observando que a Terra está sujeita a mudanças, “renasceu, rachou, fez-se em pedaços, desintegrou-se em seus componentes iniciais, volta a água...outra vez a Terra se formou do Sol”. Outeiro foi à mesma página 833 de “Os Irmãos Karamazóv” e repetiu: “isso é o mais indecente dos tédios”.

Um debate sobre temas tão amplos – eterna juventude, vida e morte, resumidos no Paradoxo das Paquitas, como nome fantasia e leve dose de embromação – sempre está sujeito a enormes paixões filosóficas, científicas e religiosas, mas é surpreendente que não atraia a atenção do grande público e da mídia, mais afeitos a assuntos menos abrangentes, como a cura da acne e dicas para a economia doméstica. Por isso, os dois professores, mesmo antagônicos, são grandes amigos e integrantes da mesma entidade encarregada de levar tais precupações futuras aos seus póstergos. Não querem que grandes questionamentos sobre o universo fiquem restritos a maconheiros e filósofos franceses.


domingo, 26 de maio de 2013

Lançamento do livro Iberê Segundo Paulo


Dia 17 de junho de 2013
Mercearia São Pedro
A partir das 19h30
R. Rodésia, 34 - Vila Madalena - São Paulo
(11) 3815-7200

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Os mortos escrevem mal



Graças às minhas habilidades mediúnicas, comecei a trabalhar numa editora espírita como psicografador. No início, coloquei no papel a obra do doutor Otoniel, falecido em 1954, cuja vida transcorreu entre grêmios literários e a benemerência. Otoniel ajudou ao próximo e escreveu livros com instruções para uma existência sadia e útil na Terra. Morto, continua escrevendo, indicando o caminho seguro para uma reencarnação de primeira linha. Tem muitos leitores, mas o saudoso Otoniel escreve mal, em minha modesta opinião de bacharel em Letras. O texto vindo do além para minhas mãos não passa de um ajuntamento de frases de autoajuda – tão ruins quanto as dos autores vivos do gênero.

Tudo bem. O nobre Otoniel sempre teve um estilo gorduroso, cheio de parágrafos desnecessários, muito discurso e pouca história. A morte, no entanto, pouco contribuiu para a concisão e a criatividade. Era de se esperar que o outro mundo lhe desse temas fantásticos, revelações retumbantes e a sustança filosófica de um Dostoiévski. Não. O doutor Otoniel continua escrevendo do mesmo jeito. O material psicografado revela pouco diferença dos livros publicados em vida, quase todos pela editora do autor.

O problema maior, no entanto, é que a editora resolveu publicar grandes escritores e agora estou às voltas com Machado de Assis, uma grande responsabilidade. Fiquei curioso, até excitado, com a possibilidade de levar ao público uma espécie de “Memórias póstumas de Brás Cubas II”, narrado por um autor defunto de verdade. Esperei que ele contasse a morte dentro da morte - metalinguagem com metafísica-, e viesse com a explicação dos fenômenos do universo de forma graciosa e precisa. Pois morto duas vezes, como personagem e autor, o novo Machado de Brás Cubas II é uma decepção. A morte tirou-lhe toda aquela audácia e inovação, raspou seu sarcasmo, extirpou-lhe a ironia. Cadê a pena da galhofa e a tinta da melancolia? Não sobrou nada. Nem a geologia dos campos santos. O espírito do escritor fluminense, psicografado por mim, não é inferior nem superior ao do doutor Otoniel em termos literários. Se a morte tudo iguala, eis aí uma prova.

Por meu intermédio, o incorpóreo Machado ainda se desculpa quando dita suas linhas. “Estou meio enferrujado”, diz ele. Victor Hugo, Camilo Castelo Branco e Casimiro de Abreu passam pela mesma crise de apagão criativo, “perderam a mão”, segundo meus colegas psicografadores. Pode ser uma fase ruim da cena literária pós-túmulo, mas desde que Allan Kardec lançou a ideia de que escritores continuam a escrever depois da morte nenhum morto produziu algo que preste.


Meu amigo ateu não acredita nas histórias que me passam Otoniel e Machado. Sugere um psiquiatra de renome para meu caso, provavelmente relacionado a perturbações mentais, capazes de produzir alucinações, e se o estilo dos meus psicografados é ruim a culpa é unicamente minha. Eu mesmo estaria escrevendo aquilo, guiado por algum transtorno de baixa qualidade estilística. Discordo. Respondo que um estudo da USP revelou “resultados intrigantes quanto a menor atividade cerebral durante o estado dissociativo mediúnico e concomitante geração de complexos conteúdos escritos”. Meu amigo rebate, mais condescendente: mesmo que eles escrevessem tenderiam a repetir o que já escreveram em vida, pois literatura é baseada na vivência, estado teoricamente inacessível aos mortos. Como bacharel em letras, aceitei este ponto. A produção psicografada padece do lugar comum, da ausência de sacadas e de histórias atraentes. Precisa de renovação, novos temas, talvez um sopro de vida. 

domingo, 19 de maio de 2013

Paris





Passei a vida com o propósito de conhecer Paris. Na infância, era apenas um sonho, a família pobre mal conseguiu me levar duas vezes à capital do Estado. Quando jovem, no primeiro emprego, o dinheiro das férias sumiu com dívidas e objetos de uso pessoal. Comprei um tênis e um guia turístico da França. Sempre havia um impedimento para a viagem. Já velho, enfim, veio a chance. Aposentado, tinha o suficiente para pagar as prestações das passagens, em doze vezes, e embarquei com a mesma ansiedade de criança.

Não peguei no sono. Paris nunca chegava. Paris parecia cada vez mais distante. Era como voar em sentido contrário ou em círculos. Nenhuma paisagem lá embaixo. Só nuvens e o ronco dos motores. Os outros passageiros aparentavam tranquilidade, como se Paris fosse logo ali, um destino corriqueiro. Uns dormiam, outros liam, alguns conversavam sem demonstrar ansiedade. Mesmo nos momentos de turbulência não emitiam sinais de apreensão. A mulher do meu lado roncava como se estivesse em sua cama. Comigo era diferente. Não conseguia parar de mexer as pernas, suar frio e roer as unhas, sempre pensando na possibilidade de não chegar.

De repente, avistei a terra. Nada demais. Só áreas de agricultura, longas faixas em tons de verde e amarelo, enquanto o avião começava a descer, mas de maneira estranha. Não era possível um pouso naquela posição. O bico estava abaixado demais, inclinando-se para a vertical. Então, um dos tripulantes anunciou uma anormalidade – uma anormalidade muito grande, pois um dos motores ardia em chamas e caíram as máscaras de oxigênio e os calmos passageiros mudaram de atitude. Gritos e deus nos acuda, o carrinho de bebidas rolando no corredor como nos filmes, cheiro de fumaça e querosene e as aeromoças aos prantos.

Não encostei a cabeça nos joelhos, como os demais. Eu só queria ver Paris pela janela e vi. Cada vez mais perto. Olha a torre Eiffel, a cidade crescendo, crescendo, o Sena, uma linda manhã de maio. Cadê o aeroporto? Não importava. Era a viagem dos meus sonhos.