sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A escada



Descia a escada, com cem páginas debaixo do braço, tropeçou no cadarço, sempre mal atado; caiu e morreu.

Duas horas antes: escrevo um livro de memórias; sou velho, espero que dê tempo de terminá-las. Pedi a um amigo para cuidar do preâmbulo. Caso algo me aconteça, morte ou perda de memória, ele se encarrega do começo do livro, informando como findei. O texto com início dele será a apresentação da autobiografia. Duas horas antes, dois pontos, também é ideia minha. Poderia ser anos antes, minutos antes, qualquer tempo – um truque barato de cinema. Isso aí depende dele. Só quero começar pelo fim.

Faço anotações: oitenta anos não é mole. Com oitenta anos, já vimos quase tudo e não lembramos quase nada. Aposto em quase nada. Cheguei aqui insatisfeito, querendo mais, umas linhas a mais, pelo menos, porque no meu caso só resta descrever. Não há vida, na prática, só um velho sentado, escrevendo o passado, tentando uma vaguinha na posteridade. A vaidade vai até o fim e queremos ultrapassar o fim sem perder a importância. Deixar uma marca.

...


Tonturas são normais, velhas conhecidas, e sei lidar com elas. Sei lidar também com meu corpo estranho há muito tempo. Tenho sintomas clássicos de doenças terríveis, mas não vou ao médico, nunca fui nas últimas sete décadas. Então surgem manchas, tosses, gânglios linfáticos, uma bolota sob a pele que dói e se move. Depois tudo some sem deixar sinais. Não ligo nem procuro respostas. Pior seria um diagnóstico apressado, capaz de matar com a rapidez de uma insidiosa moléstia, como se dizia antigamente. A cara solene do médico, seu olhar superior, determinante, dando um prazo de seis meses ou menos.


Morre-se ali, no diagnóstico, e todos os outros medos são superados, inclusive o pânico de descer escadas como se estivesse descendo de costas ou de olhos fechados.  

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