Eu te direi quem serás,
prometeu o adivinho, olhando para meus olhos, capturando por ali alguns
segredos, ou talvez estivesse só enganando, como todos os presditgiadores e
quiromantes desta cidade. Não sei por que frequentava casas de ciganas e por
que cedia a qualquer um que se apresentasse para predizer o futuro. Podia ser um
vício ou doença, pois o futuro só existirá depois de agora e lá só haverá alguma
coisa quando virar presente. Pensando dessa forma, não se pode prever o futuro.
Mas o adivinho Francisco de Athayde
Pereira Felix garantia o contrário. O futuro está na frente, prontinho, comigo
dentro, mais velho ou morto, doente ou milionário; basta saber os caminhos
certos para ver e ouvir o que se passa na semana que vem ou daqui a dez anos. É
uma estrada só, tempo e espaço, e estamos sempre em dois lugares ao mesmo tempo,
no mínimo: aqui e adiante. Eu te direi quem serás, ele repetiu, ou repete,
depende de sua posição no tempo.
- Você não tem um bom futuro - disse
Pereira Felix -, mas posso alterá-lo por alguns reais. Paguei-lhe adiantado. A
primeira parte do tratamento consistia em contar como será; como estarei dentro
de cinco anos. A parte seguinte, mais trabalhosa, contemplava os ajustes para
evitar a desgraça do meu corpo e alma que ele enxergava bem na frente.
Pedi logo o diagnóstico,
medroso e curioso ao mesmo tempo, mesmo sem acreditar na possibilidade dessa
operação. Só que ele começou bem. Também adivinhava o passado recente e revelou detalhaes de meu comportamente atual, embrião
bem formado de um complicado tempo vindouro. O porvir apontava para velhice e
pobreza, uma prejudicando a outra. Daí notei alguma verdade, especialmente
porque ele falou sobre o quanto era precária minha base para uma vida posterior
decente. Porque o futuro se faz do presente, mais ou menos como uma casa surge
de seus alicerces, observou Pereira Felix, surgindo do nada, como sempre. Eu
disse que era uma conclusão moralista, ele disse que não, e estamos nessa
pendência até hoje
O certo é que tudo estava se
desfazendo de alguma forma e o homem sabia muito a meu respeito, a ponto de
citar situações e lugares onde iniciei minha perdição e onde estraguei meu
futuro. Mas feito já estava. Agora, cabia ao adivinho e, mais que isso, ao
modificador de futuros, dar uma solução ao caso ou pelo menos montar uma
gambiarra. Ele resolveu pela gambiarra.
...
Se hoje estou aqui, na presente
data, contando como foi e o que poderia ter sido, é porque, mesmo cético, segui
à risca seus conselhos. Segui porque só havia a saída do acaso, cuja
existência, segundo ele, ainda é
duvidosa. Para o adivinho, os acontecimentos de cada pessoa também carregam um
DNA, sendo determinadas situações plenamente previsíveis, como é previsível
alguém ter alguma doença herdada dos país. Para exemplificar, há quinze anos
ele antecipou minha demissão no dia 26 de agosto de 2008 e, agora, em 2013,
posso atestar a verdade. Nesse caso, ele não pôde influir, dar-me o emprego de
volta, porque havia uma crise global no mercado de trabalho e alterar uma
estrtura desse porte não seria aconselhável, aliás, continua não sendo. Os
adivinhos também têm seu código de ética.
Desse dia em diante, 26 de
agosto, passei a seguir Pereira Felix como a um mestre, embora, como já disse,
sem certeza absoluta de suas premonições; e nem sei se é grande coisa acreditar
ou desacreditar, pois a verdade pode ser desconcertante, diferente de tudo
aquilo que você dava por certo ou errado. Fui porque gostei do tratamento
prescrito, cada dia mais caro, quase cinquenta mil, mas valia a pena; consegui
me livrar de Adélia, uma moça sempre presente nos melhores e piores momentos da
minha vida – quase todos provocados por ela. E consegui deixar de beber e passei
num concurso público, estando agora numa situação bem melhor do que estaria
caso não tivesse adotado as providências do adivinho. Não sei como o vidente
muda o futuro de cada um, ou pelo menos como dá um jeitinho nele, mas sei que é
pelos olhos que ele entra. Depois, grave e solene, anuncia para fazer isso, não
fazer aquilo, pois é assim que terás uma vida mais ou menos e não a desgraça
que te espera.
Sobre ele próprio, disse pouco.
Mantinha-se saudável e jovial aos oitenta e seis anos, todas as bactérias apaziguadas,
quase um imune total. Era o que desejava e tinha. Ia buscar no futuro curas
para males de hoje; só que ele não podia contar a ninguém para não
destrambelhar a história do universo, podendo inclusive acontecer por causa
disso um choque violento entre futuro e presente, matando não só os que estão
agora, mas o que estarão depois, ou seja, tudo se mistura e morre. Então: além
de cuidar da saúde, o adivinho gostava de passear pelos séculos em nome dos
desejos e frustrações de seus clientes.
Ele interessou-se por Adélia e
sua vida comigo. Fuja dessa mulher, aconselhou. O problema é que eu já havia
fugido e nada adiantou. Adélia era mais nociva em sua ausência, levando-me a
uma vida de tanto faz quanto tanto fez, extraindo apenas prazeres do álcool, enfim,
Adélia foi embora e levou umas partes que me faziam falta.
Adélia não cabe neste espaço,
mas pode ser comprimida ou compactada, tornando-se tão somente personagem de um
projeto de conto em que ela, e não o vidente, tem o papel principal. Adélia de forma
sintética: sexo e aventura. É um projeto antigo de mulher, difícil de funcionar
em nosso meio, embora cabível na ficção. A beleza se enquadrava em meus
padrões, o jeito mais ainda, sem contar uma inteligência rara, conversa animada
para a noite inteira; disposição não faltava. Seu defeito era ser despida de
preconceitos, achava tudo normal, não sei se ainda acha. Por isso saía com meus
amigos e os dela e não raro os trazia para nossa casa, onde dormia com eles. Às
vezes eram dois ou três e eu tinha que achar normal. Não achei e levei uma
década num vaiavém com Adélia; batia a porta decidido e voltava com o rabo
entre as pernas. Adélia tentou me ensinar a conviver com tais circunstâncias,
não consegui e, sob as ordens de Pereira Felix, me desprendi dela para sempre.
Desliguei de fato de Adélia
quando Adélia, depois de sumida, reapareceu sem o viço de antes, vagarosa, desgracioso.
Não tanto pelos quilos a mais, mas sobretudo pela falta de assunto. Sumiram a
eloquência, os olhos acesos e o rosto expressivo transformou-se num rosto
normal, sem história, embora tivesse passado muito tempo desde a última vez em que
vi Adélia. Ela contou sua vida num resumo rápido e não mais que o necessário:
casou-se teve filhos, fez cirurgia plástica e fica em casa, cuidando as
crianças. Uma Adélia plenamente normal não me interessaria mais, conforme
informou o adivinho, com boa antecedência.
Ainda hoje fico com a imagem
antiga de Adélia, dispensei a outra, mas já não sofro como antes, tenho mais o
que fazer, arrumando minha vida de acordo com as instruções de Pereira Felix.
Desconfio até que a Adélia que me visitou veio de outro tempo, mais na frente,
trazida para desmontar meu futuro de abandono, sem ela. Pois, corrigiu-se isso
também. Já não choro na janela, como teria chorando se Pereira Felix não
cruzasse meu caminho. O que teria vivido, esqueci de propósito e nem sei ao
certo se vivi tais momentos porque eles não estão aqui; estão lá. Não importa.
O adivinho diz que é tudo a mesma coisa; o ontem, o hoje e o depois, tudo
ilusão.
...
Não há vidas passadas, avisa
Pereira Felix. Só uma única vida em vários cantos do tempo, como átomos pulando
entre órbitas, num movimento sem lógica e sem rumo. Pereira Felix também não
sabe muito além de suas projeções; ninguém sabe. Deve existir um vértice em que
tudo se acaba ou se começa de novo, uma irrelevância ou um espetáculo, mas
sempre um negócio inesperado, contra todas as nossas certezas e incertezas. De
tão complicado, de tanto embrenhar-me nessa epopeia com Pereira Felix, só
encontro alguma realidade quando penso em Adélia. Sem abalos emocionais; apenas
como a peça-chave da minha da minha narrativa e da minha vida, que afinal são a mesma coisa.
Penso inclusive em continuar
essa história, sem Pereira Felix, apenas com Adélia. Assim me livraria dessas
despesas, dando-me alta; deixaria de lado as estripulias do tempo, permanecendo
neste ponto, calado, escrevendo, lidando apenas com lembranças.