sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O velho submerso



Era meio dia quando chegamos à cidadezinha calorenta. Ninguém na rua, portas fechadas para o almoço, latidos esparsos. Mais uma volta pelo centro e o mesmo cenário se apresentava, sem sons humanos; apenas a batida de asas de pássaro. Adiante, ao lado da prefeitura, havia um pequeno terreno baldio com máquinas de terraplenagem tomadas por ferrugem e mato. O trator lembrava um navio naufragado no seco; no lugar dos peixes, lagartixas.

Cidades pequenas têm esses silêncios do meio dia, mas ali o silêncio era maior. Quase todos já haviam abandonado o município, deixando para trás alguns renitentes. A delegacia fora desativada e em breve não haveria nem água nem luz à noite. Na verdade, não haveria mais nada.

Batemos numa dessas portas. Palmas e "ô de casa", como diziam por lá. Sem resposta. Na segunda, um velho chegou arrastando suas sandálias num corredor enorme e escuro, decorado com fotos colorizadas, azuladas, da família. Chegou com cara de sono e nos olhou sem surpresa. Informamos que era o último aviso: a cidade seria inundada para a construção de uma barragem. Lá na frente, a jusante da represa, o novo vilarejo estava pronto para receber os munícipes. Casas novas, posto de saúde e mercadinho. O homem baixou a cabeça, tomou fôlego e disse que ficaria com os mortos. Dissemos que os corpos do cemitério não estavam mais lá. Ele disse que alguma coisa ficou; umas partículas, pelo menos.

O velho tinha um senso estranho. Explicou que a cidade a ser submersa era sua última parada porque não iria parar onde não viveu, onde sua mãe viveu, onde não viveram seus mortos. A vida no novo povoado já seria o fim da vida e  portanto não estava disposto ao sacrifício de um  movimento inútil.

Daí uma questão técnica transformou-se numa questão mais complicada, pois o velho não via sentido em sair, não arredaria pé nem que fosse a pulso. Eu paro de respirar, que é o mesmo que morrer afogado, ameaçou o velho. Sei parar de respirar e sei morrer, reforçou o velho, mastigando um palito de fósforos com  muita calma. Eu mesmo pensei um pouco, só um pouquinho, nas razões deste último resistente, enquanto ele continuava me olhando, desta vez mais terno, e assegurou que não queria atrapalhar a obra, entendia meu ofício etc; só queria o direito de ficar.

Seguiu o velho com um monte de histórias antigas, a família nas calçadas, a construção do Instituto Histórico e Geográfico, os tempos da escola primaria, os trovões de madrugada, as moças do Curso Normal e o cometa que atravessou a cidade, meu Deus, nunca vou esquecer do rabo de luz estirado no céu, lembrou o velho, meio emocionado.
 
Velho inverossímil, seu rosto anguloso inverossímil, não parava de falar e daí passei a anotar para o relatório, sabendo que certas partes não eram do interesse da construtora, e talvez até pensassem que fosse invenção minha, caso desse destaque a tais alegações do velho, que não parava de falar, bem sereno, daqui não saio nem morto, disse o velho, quero ficar no fundo, em cima de torre da igreja, borbulhando um pouco diante do grupo escolar até me deitar no cemitério, debaixo d'água. Vou morrer de qualquer jeito, se ficar ou mudar, então quero morrer assim, afogado onde nasci, de volta para o líquido da minha mãe. 






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