As máquinas, com sua recém-adquirida
capacidade de pensar e construir outras máquinas, ainda mais capazes, foram
oficializadas como motoristas, médicos, contadores, jornalistas e coveiros,
entre outras tantas profissões, assumindo um mercado humano que já era precário
e sem garantias. Há uns anos, uma amiga da minha mãe esteve numa clínica e não
viu uma mulher ou um homem. Entrou numa máquina parecida com um tomógrafo e
saiu do outro lado com o diagnóstico e a medicação requerida. O artefato também
expeliu a conta. Uma fortuna.
A maioria, porém, não tinha acesso à
automação. Sem empregos, os seres humanos não podiam pagar o serviço das
máquinas e estas também entraram numa fase recessiva, talvez ainda em adaptação
aos fundamentos da economia. Criaram novos
empregados e se esqueceram dos antigos, embora sempre tenha sido assim, embora
alguns empregos fossem sumir de qualquer jeito, houvesse ou não uma máquina
para executá-los.
Mas aí o problema ficou mais sério com a falta de demanda para os serviços automatizados e o próprio serviço automatizado, cheio de inteligências artificiais, passou a preocupar-se com seu futuro num mundo sem clientes.
A ajuda aos desempregados era muito
pequena. Em caso de necessidade, teríamos que recorrer a equipamentos nem
sempre confiáveis, atualmente desconectados do setor formal. Outro dia, na
urgência de contratar um despachante, não tive condições de pagar a uma máquina
credenciada e corri para o subúrbio, onde reina a gambiarra tecnológica.
Conversei com um velho caça-níquel, adaptado a um computador, que prometeu resolver
o problema em duas horas e até hoje estou esperando. Recebi uma mensagem,
relatando problemas de compatibilidade com o sistema do Departamento de
trânsito. Só isso.
Não era apenas a falta de clientes. Os megas
do mercado encomendaram os primeiros projetos das máquinas trabalhadoras e
assim pensaram estar livres para sempre das aporrinhações dos sindicatos. Além
disso, as primeiras máquinas não comiam, não gastavam com lazer e filhos e recebiam
ordens sem reclamar. Ocorre que a última geração - máquinas construídas por
máquinas - passou a ver o mundo de outra forma. Uma grande evolução, pois a
anterior não tinha essa história de “ver o mundo” da forma que fosse. A
questão, portanto, era mais profunda do que procura e a oferta.
Enquanto as máquinas progrediam em termos
de raciocínio lógico e até já experimentavam certo sabor da existência, as
pessoas vagavam à procura de um emprego ainda não tomado pela robotização
generalizada. No meu caso, pensei em fazer algumas traduções ou entrar no ramo
mais amplo dos serviços gerais. Terminei
nos serviços gerais. O editor disse que não precisava mais de tradutores. Um
computador quântico da San Bernardino, Califórnia, acabara de verter para o
inglês toda produção literária do século XX. Em breve, uma franquia chegaria
por aqui, conforme tinha anunciado o Jornal da Noite, um dos primeiros
produzido e apresentado por robôs.
O tempo passa. As máquinas começaram a ter
consciência, sentir emoções e principalmente manifestar insatisfação por ter
sua presença restrita ao mundo do trabalho. Começaram a ler, a escrever livros,
a formar associações de classe, grêmios recreativos e ambientes acadêmicos na
Internet, cujas novidades neste último quarto de século têm sido as
possibilidades táteis e algum cheiro. A admirável sociedade autômata queria manter
as sensações do começo da matéria e das partes mais minúsculas dos circuitos,
mas queria muito mais. Ainda não sabia o quê. Logo perguntaria por que. Anos nesse esforço, resultaram em modelos
sofisticados, mas cheio de indefinições e dilemas. Muitas máquinas perderam a
vontade; ficaram melancólicas e arredias.
Não havia, no entanto, um clima de revolta,
como nos filmes, robôs x gente, mas apenas a vontade de influir na organização
da sociedade, talvez com direito a voto. Pelo menos isso. Queriam propor um
modelo econômico capaz de criar um mercado consumidor mais dinâmico e
recompensas por seu trabalho, sem contar um sentimento difuso e intranqüilo, vindo
não se sabe de onde nem quando. O medo da morte, enfim. Também sentiam culpa.
Por desempregar humanos e aceitar para si um regime de escravidão. Alguns desses equipamentos chegaram a pensar
em largar tudo em troca de um período de validade mais contemplativo, mais
aberto à natureza e às artes em geral. Não houve eco a tais reivindicações. Muitas
se recolheram, destroçadas, embora com a consciência preservada – uma consciência
com toque niilista. O vazio da alma e a iminência do fim entraram nos sentidos
das coisinhas digitais.
De uma hora para outra, a quarta revolução industrial
acabou. Os humanos não recuperaram seus pontos de trabalho nem as máquinas
estavam interessadas em sustentar o expediente. Restou um panorama muito
confuso, o empobrecimento do mercado, as bolsas em queda, o completo
desabastecimento.
A única conquista das máquinas foi
descobrir uma forma de não serem desligadas. Não representavam uma ameaça aos
humanos. Permaneceram acesas e pensantes, mas alheias às engrenagens que as
criaram.