sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Cigarros e consequências niilistas




Por que essa cara feia? Só perguntei se tinha cigarros. Diga que não tem e pronto, sem discurso, sei dos males do fumo, mata, aliás, não só o fumo mata, um monte de coisas mata, e a senhora também vai morrer, mesmo sem fumar, sem beber, sem fazer nada. Pode até morrer de tédio. Se eu fosse a senhora já estava morto, preferia. Pode viver mais uns anos? E daí? Tudo termina do mesmo jeito.

Agora fudeu. O que Jesus tem a ver com isso? A senhora acredita em Deus? Ótimo. Vá pro Céu e não me encha a paciência. Vai fazer o quê no Céu? Ninguém sabe como é, ninguém sabe se existe, ninguém sabe de nada. E se vai pro Céu depois de morta por que se preocupar em não fumar? Não gosta de fumar, não fume, mas deixe os outros em paz.

Não estou irritado, não, foi a senhora que começou. Fiz uma pergunta banal - “tem cigarros?” - e ouço mais do que um “não”. Um olhar de censura, quase raivoso, como se eu estivesse atrás de cocaína ou plutônio. Depois a senhora inicia a pregação religiosa, não somente contra o tabaco, mas contra meu gesto, contra mim e mais adiante começa a me enxergar como infiel, um homem sem Deus, um descrente.  Não é da conta da senhora.  Sou viciado, sim, mas mandaria a indústria do cigarro pro inferno, pena que não há inferno, porque mandaria a senhora junto.

É cada uma. O comércio hostil, só faltava essa. Se a moda pega, posso ser preso por pedir qualquer produto que o vendedor não tem. Ali na esquina com certeza têm cigarros, na loja de conveniência, e pergunto o que senhora tem feito em relação a isso. Vai jogar uma bomba na loja, vai? Daqui a pouco essa sua obsessão vira terrorismo. Fanatismo do caralho. Falo sim, caralho. Vai chamar a polícia? Pois chame. Eu devia ter comprado um pacote no supermercado, a porra do supermercado só vende em pacotes, acho um absurdo. Como também acho absurda a reação da senhora.





Seu guarda eu só perguntei se ela tinha cigarros. Chamar a polícia por uma besteira dessas. Só que a vendedora queria me converter à religião dela. Não gosto disso. Só queria um cigarro... Não, não. Não agredi ninguém. Só reclamei do atendimento. Tudo bem, o senhor não fuma, mas o que uma coisa tem a ver com a outra? É um produto vendido legalmente. Nunca fumei em áreas proibidas, respeito a lei, não posso ser acusado de nada. O quê? Ela disse que sou niilista? E daí?  Um niilista tentando comprar cigarros. É crime? Pode ligar pra delegacia? Quer que eu explique o que é niilismo? Não quer, então pergunte ao delegado; liga ai?

Não, a senhora está enganada; ela está enganada, seu guarda. Niilistas não matam pessoas; é um conceito filosófico, a desvalorização e a morte do sentido, a ausência de finalidade e de resposta ao “porquê”. Li isso na Wikipédia e nem sou niilista, apenas um consumidor exigindo respeito. Quer dizer que o delegado está procurando o crime de niilismo no Código Penal? Não vai encontrar, seu guarda; é melhor ele consultar Turgueniev, Dostoievski, esse pessoal. Máfia russa? Não é nada disso, seu guarda.

Estão averiguando? Averiguando atividades da máfia russa nessa área? Que loucura! Serviço Secreto da PM? Não se pode mais fumar nesta cidade? O senhor está confundindo as coisas e essa mulher é louca. Niilismo não é o nome de uma operação criminosa. O delegado disse que os niilistas combatem as religiões? Onde ele leu isso, meu Deus? Só dizem que a vida não tem sentido. Só isso. Não, não acho pouco, mas não é crime em lugar nenhum.

Tudo bem, pode me levar, mas dá uma paradinha naquele quiosque, por favor. Olha aqui o dinheiro, compra pra mim. Obrigado, seu guarda. Valeu mesmo. É isso. Vermelho. Box.


quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Viagem sobre a viagem





Para ele toda viagem guardava uma decepção – a chegada. A emoção estava na véspera, na permanência nos aeroportos e no período do voo. Tudo acabava no desembarque, onde não havia mais nuvens; apenas bagagens rolando na esteira e passageiros apressados.

A viagem começava quando ele comprava a passagem. Gostava dessa observação do escritor Gabriel Garcia Marques. A partir do bilhete na mão, iniciava-se a alegre ansiedade, desde o planejamento minucioso do itinerário e conexões – quanto mais escalas melhor - à arrumação da mala. Dúvidas boas e freqüentes sobre que livro combinava com um saguão lotado e um céu de brigadeiro.

Adorava aeroportos. Garantia que as mulheres eram mais bonitas nos aeroportos, especialmente as passageiras de shortinhos rumo a lugares ensolarados. “Essas vão para Noronha”, dizia baixinho quando deparava com um grupo acima do padrão, com alcinhas de biquíni sob incipientes blusinhas brancas.  No deck, outro espetáculo – o sobe e desce dos aviões, enquanto lia jornais e tomava café. Então voltava ao segundo andar e estava mais uma vez diante da variedade de gente a ser embarcada. Talvez alguém daquela paisagem humana, mudando a cada lote de voos, também pensasse como ele e achasse a voz sensual de Iris Lettieri, anunciando partidas e chegadas, um dos grandes momentos da vida.

Na ala internacional, a intensa mistura de vozes estrangeiras. Suecas e nigerianas numa mesma fila, e ainda por cima lindas, em que outro lugar ele encontraria? Dirigia-se às moças, num inglês precário, pedindo informações desnecessárias, só para ouvi-las falar e ver olhos brilhando de intensa expectativa.

Usufruía ainda mais o aeroporto quando Iris anunciava o atraso de seu voo. Para muitos seria uma contrariedade. Não para ele. Mais tempo para observar a fauna humana, aeromoças apressadinhas arrastando suas malas padronizadas, comandantes altivos e despedidas de cinema.

Depois, o voo em si. A bordo poderia pensar na vida, anotar ideias, ver um filme, ouvir a conversa dos vizinhos, ler a revista de bordo sob o senso spinoziano, ou seja, um milhão de possibilidade a nove mil pés de altura. Como não imaginar quem estava lá embaixo, na região rural de Uberaba, por exemplo, era outra diversão e por isso sempre viajava na janela. Olhava para terra, o mapa gigante, ruazinhas, e de repente um arco-íris, uma tempestade, outro pequeno avião passando ao lado. Gostava, enfim de tudo. Gostava até mesmo das turbulências.

Por fim o pouso triste, a inexplicável pressa das pessoas em sair do avião, a espera das malas e logo o taxi seguiria pelas ruas da cidade, mostrando que ao rés do chão tudo perdia importância.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

São Paulo sem ninguém





Na semana passada, num desses canais de ciência, vi como seria a cidade de São Paulo caso seus moradores, nativos e imigrantes, simplesmente deixassem de existir. Em poucos meses, a Avenida Paulista seria tomada pela Mata Atlântica e animais domésticos e ferozes - fugidos do Zoológico - dominariam o ambiente. Não haveria energia elétrica, os incêndios consumiriam as favelas e logo em seguida os prédios de luxo.  Carros parados transformados em abrigo de insetos, água dos reservatórios transbordando em outras partes. O mundo sem humanos, uma enorme trepadeira escondendo o edifício Copan, projetado por Oscar Niemeyer, embora esse detalhe não venha ao caso, pois nada passará à posteridade, nem mesmo a arquitetura. A cidade, enfim, está arborizada.

O cenário serve a outro propósito: sobraram duas pessoas, um homem e uma mulher, numa versão Adão e Eva sem religião no meio. Sobreviveram e não se conhecem. Adélia está na Zona Leste, escondendo-se de um casal de hipopótamos. Paulo está num café dos Jardins, protegendo-se das ratazanas com uma submetralhadora encontrada numa viatura da PM.  Não há a quem recorrer. Não se pode culpar o governo nem as operadoras telefônicas pelos celulares mudos. A tecnologia é só uma lembrança. Naquele mesmo café, meses atrás, ele tinha pedido um espresso, feito com grãos da variedade Bourbon Amarelo, R$ 7,00 a xícara. Paulo, portanto, é um homem fino e rico. Adélia, enquanto isso, sonha com uma vitamina na padaria. Ambos comerão frutas e caçarão animais assim que a comida dos supermercados perder seu prazo de validade. Por sorte, há fósforos, velas e pilhas para as lanternas. Mas chegará o dia em que só restará o fogo, a única arma contra os novos inimigos.

Um encontro de Adélia e Paulo já seria improvável numa cidade de 18 milhões de habitantes. Quanto mais agora, sem táxis, metrô, ônibus e Facebook. Sem ninguém, exceto eles. Além disso, vivem em mundos diferentes. Classes sociais diferentes. Ele ia a teatros; ela freqüentava o Centro Educacional Unificado de Itaquera e fazia curso de informática. A piscina do CEU está cheia de peixes e anfíbios, dois jacarés-de-papo-amarelo e umas sete capivaras nadam na obra da ex-prefeita Marta Suplicy. Centenas de cobras já rastejaram do Instituto Butatã até o centro comercial do bairro. Bichinhos escamosos e nojentos se juntam à nova fauna suburbana. Paulo abandonou seu apartamento de cobertura por causa da invasão de grilos, ratos e baratas. Adélia fez o mesmo com medo do hipopótamo.

Não há muito tempo.  A sobrevivência da espécie humana depende desse encontro, Paulo e Adélia, habitantes de áreas conflagradas e distantes. A metrópole é uma selva, não mais no sentido figurado. Está lotada de bichos venenosos e uma vegetação mais espessa viceja no asfalto selvagem. Para a glória póstuma dos preservacionistas, animais dados como extintos se multiplicam como bactérias. Aves esquisitas ocupam o céu dos aviões.

A idéia inicial era promover o encontro Paulo-Adelia. Um caso de amor para o recomeço da civilização. Mas falta logística, comunicação, vias de acesso. Sem contar que Paulo é estéril e Adélia prefere as meninas.   

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O primo Guedes




Eu me confundia com a quantidade de gente e de intersecções familiares presentes no Facebook. Outro dia, marquei como parente certo José Guedes, morador de Maceió, meu primo, assim acreditava. Como não era de acompanhar o dia a dia virtual, lia as coisas superficialmente, pois não entendia direito e tinha medo de clicar alguma coisa e estragar tudo. Quando enfim resolvi entrar no mundo de vocês, notei como o primo Guedes havia mudado. Envelheceu bem, estava um gato, dava pra ver pelas fotos, e seus gostos opiniões políticas eram bem diferentes de trinta anos atrás, a última vez em que nos vimos.

O marombado primo Guedes, ardoroso direitista, era agora um homem de esquerda, mas talvez de uma esquerda não tanto conhecida, porque citava um monte de nomes estranhos, situações que não lia nos jornais e outros sinais de transformação radical. Por exemplo: primo Guedes informava ser ator e achei estranha a troca da Gastroenterologia  pelo cinema, assim como a troca de mulher e de cidade; estava agora morando em Coimbra, Portugal, num relacionamento sério com Maria Dolores e não mais com Elizabeth Coutinho.

Mas ele sempre me tratava de prima e assim fomos, trocando impressões, desejando feliz aniversário um ao outro, além de recíprocas cutucadas e curtidas. Havia mais, muito mais. Com o tempo, a família era o que menos importava em minha comunicação virtual com o primo Guedes. Estávamos no perigoso limite das vias de fato – ele, lá; eu, cá -, entre frases excitantes e troca de fotos sensuais. Achei meio incestuoso, mas fui em frente. Tão em frente que marquei uma viagem à Europa, a primeira, só para testar certas compatibilidades com o parente distante e galante. Ele se alegrou. “Vai ser bom, teremos uma grande festa aqui”, escreveu, in Box, como se diz.  

Antes de viajar, no entanto, descobri que o Guedes de Coimbra não era o mesmo Guedes de Maceió. O alagoano também estava no Facebook e continuava gastroenterologista e homem de direita, daqueles que defendem a pena de morte e detesta gays. Azar, fui assim mesmo, era até melhor. Não era mais meu primo e ficar com primo é meio estranho. Logo no aeroporto de Lisboa encontrei o Woody Allen, atrás de locações para mais um filme sobre capitais da Europa. O mundo do cinema, o mundo de Guedes, meu ex-primo. Que aventura. Fiquei extasiada.

Depois do desembarque vejo Guedes, o ator e - surpresa desagradável-, estava acompanhado do outro Guedes, meu primo alagoano. Havia ainda Rita Guedes, irmã do português, além de quase duas dezenas de Guedes, todos sorridentes, com cartazes nas mãos, esperando mais Guedes que viriam do Brasil e de vários lugares do mundo. Eu sonhava com o amor e estava num conclave de Guedes, uma grande reunião de família, parentes próximos e distantes, primos de terceiro, quarto e quinto graus, e até um bisneto de Victor Guedes, fundador do azeite Galo. Tudo havia sido programado na página “Os Guedes”, no Facebook, que nunca vi.  Pensei em pular da árvore genealógica e pegar o primeiro voo de volta. Mas a multidão de Guedes me cercou, num tipo de opressão familiar literal, na base da força física, imposta por abraços apertados. A maioria era desconhecida, mas divisei, no meio da confusão, minha tia Edilene, minha avó numa cadeira de rodas e meu tio avô Abelardo, que dava como morto.

Cercada de Guedes por todos os lados, cedi ao pesadelo, relaxei. Mesmo porque, depois da longa confraternização, primo Guedes, o português, encostou-se, retomou a conversa interrompida no Facebook e resolveu mostrar serviço.  Resultado: casei, tivemos dois pequenos Guedes e estou aqui até hoje. O resto da família foi embora, tio Abelardo morreu de verdade e Woody Allen desistiu de seu filme lisboeta.  

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Moça com data de fabricação




Ontem eu vi uma moça linda com uma tatuagem na coxa em que informava o dia, o mês e o ano em que nasceu – FAB: 17-01-90 -, escrita com a mesma fonte usada para indicar a data de fabricação de um produto. Pensei em perguntar – só pensei – qual seria a data de validade. Quando ela virou-se e sorriu parecia ter sido feita de matéria não perecível.



Sertão

“O sertão é necessário” foi o mote que surgiu numa conversa sobre diferenças: a vida urbana e o semiárido do Nordeste, duas culturas e seus contrastes enormes, todas as facilidades encontradas na metrópole e todas as dificuldades sob a seca, como agora. O mais interessante é sermos de lá e estarmos tão longe, há tanto tempo, mas ainda pensando naquele céu de estrelas e nas pessoas capazes de nos ensinar coisas preciosas, mas pouco pragmáticas. Em janeiro iremos olhar as estrelas, conversar um pouco numa sombra qualquer e depois a vida seguirá, como no verso de Pessoa, neste oásis de inutilidades ruidosas.



Ilustração: Henrique Koblitz

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Doralice





Numa tarde de abril de 1993, achei meio milhão de dólares numa lata de lixo. Eu era morador de rua. Pensei em entregar o pacote à polícia, diante da imprensa, e aparecer nos jornais e TVs como exemplo de honestidade. Matérias assim ganham algum destaque, e talvez a partir deste gesto nobre minha vida mudasse. Sonhava em viver como antes de ser varrido da sociedade por uma sucessão de erros: separação, pensão alimentícia, aluguel atrasado, alcoolismo, perda do emprego e por fim o despejo. Minha família sumiu.

Calculei o custo-benefício da operação e resolvi ficar com a grana. Foi uma análise fria, entre a culpa e o arrependimento. Fiquei com a culpa, bastante suportável porque não sabia de quem era o dinheiro. Bens materiais, nesses casos, servem mais do que elogios, e minha situação era materialmente dramática. Não consultei ninguém para tomar a decisão. Não tinha amigos nesse nível de intimidade e temia ser roubado por outros moradores de rua. Creio que nenhum deles contribuiria para meu drama ético. Dentro de mim, no entanto, houve um intenso debate – devolvo ou não devolvo? – e quando olhei para meus trapos vi como saída prática e aceitável ficar com as notas de dólares.

Troquei apenas cinqüenta, numa casa de câmbio, e tremendo de medo de alguém chamar a polícia. Não houve problemas e procurei ser discreto nos próximos passos. Comprei um par de camisas baratas, uma calça jeans e tomei banho. No mesmo dia aluguei um quarto numa pensão. O dólar estava nas alturas naquele tempo. Depois troquei mais, sempre aos pouquinhos, até assumir uma vida confortável em relação à minha vida anterior. Nunca mais cataria coisas no lixo. Mesmo assim, bem vestido, fui me consumindo pela culpa e só tinha algum consolo ao pensar que poderia estar sendo devastado pelo arrependimento.

Os dólares ficaram numa caixa, no guarda-roupa do quarto, e diante da dona da pensão assumi a postura de trabalhador, saindo toda manhã e só voltando à tarde, falsamente cansado. Gostava de andar por ai, sem destino, tomando uma cerveja em bares modestos e indo ao cinema. Fazia oito anos que não via um filme. Com dinheiro no bolso, podia ver uma média de dois filmes por dia. Era meu expediente.

Ocorre que o dinheiro muda as pessoas. Eu comecei a mudar. Primeiro um celular – um modelo com tampinha -, roupas de grife, bons restaurantes, jogos do Corinthians nas cadeiras numeradas. Troquei a pensão por um apart-hotel e comprei um carro de segunda no feirão dos automóveis. Fiz novos amigos bem situados na vida e virei um bom partido. Foi ai que conheci Doralice num restaurante a quilo e em poucos meses nos casamos.

Achei adequado ter uma família nesse processo de evolução patrimonial. O casamento durou um ano. Doralice gastava muito e depois descobri que ela tinha um amante. Separação litigiosa. Ela ficou com a casa. Não achei justo, mas entreguei o imóvel. Devia ter feito algum investimento; não fiz. Doralice conhecia minhas contas melhor do que eu. Doralice perdulária e traidora. Interesseira e canalha.  Amava Doralice mesmo assim. Sentia falta de seus gritinhos sacanas, seu olhar aceso, o jeito de encolher-se na cama e depois saltar sobre mim como um animal no cio. Sofri. Voltei a beber, o dinheiro acabou.

De volta às ruas. Mendigo com um terno bem cortado num saco plástico do Pão de Açúcar e um celular sem bateria. Instalado embaixo do viaduto, num acampamento estilo MST, reconheci os velhos rostos da miséria, mais velhos e mais sujos. Não me sentia tão mal. Estava livre da culpa.  Só pensava em Doralice.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Moreninha viking




A moça das runas chegou. Ligada à mitologia nórdica, politeísta e adepta da premonição, ela ficou chateada quando eu comentei que os vikinks eram a escória de uma sociedade ainda em construção. Eram salteadores e piratas. Daí, pulei para a antropologia nacionalista: “por que Odin e não Ogum?” Expliquei então que os deuses louros têm seu Olimpo - Asgard -, mas os orixás também contam com o seu plano espiritual, Orum. “Parece muito com mitologia grega”, continuei, levando em conta que tudo por ter vindo da África, etc.

Normalmente não puxaria uma conversa desse tipo, prefiro futebol, e ela estava calada, meio perplexa, mas absolutamente linda. Com sua vestimenta cerimonial, parecia uma deusa e eu não acredito em coisas sobrenaturais, mas parecia. Poderia ter pensado estar diante de um vislumbre, uma revelação de Shiva (Shiva faz revelações?), mas não. Pensei, apenas: “que gata!”. Pois é. A moça que estava ali, versada em runas e Futhorc, causadora de tempestades e outros fenômenos, era especialmente uma exuberante morena bronzeada, escondendo sua brejeirice em gestos de personagem da Saga de Völsunga.

Na verdade, passei uma semana em meticulosa pesquisa na internet para me inteirar das religiões nórdicas. Descobri que os deuses morrem e a própria crença em Odin e Thor quase desapareceu com a chegada das tropas do cristianismo, já uma espécie de OTAN no século XI. Tomei essa providência no dia em que a deusa Hel em pessoa, embora morena, subiu numa escada para dispor a placa de seu estabelecimento: “Svartalfheim” (Repouso dos elfos). Nome estranho, sei não; só sei que Hel, o nome da deusa, deu no inglês Hell (inferno). Coisas anglo-saxônicas. Pois estava a diabinha montando seu inferninho esotérico na minha rua e não parei um segundo de olhar. Era a síntese de todas as mulheres do mundo e nem ao menos eu tinha falado com ela.

Lojinha montada, marquei a consulta.  Cheguei lá pontualmente. Sou o único cliente. O negócio está apenas começando. Duas outras moças abriram a porta do quarto onde a deusa fazia suas consultas. Foi aí que me senti ainda mais atraído e disposto a enveredar por todas as mitologias só para tomar um sorvete com ela. Como uma moreninha dessas se mete com mitos da Escandinávia? Difícil entender. “Por que não Iemanjá?”, perguntei, voltando ao início deste texto. Não seria uma surpresa se ela surgisse de Eruexin- - o chicote de crina de búfalo usado por Oyá -, mas veio com uma bata translúcida, o sol entrando pela janela, e palavras suaves de boas vindas em idioma viking. Foi difícil tirá-la deste estado e também não me importei muito, pois a janela aberta, o sol entrando e a bata translúcida formava de fato um belo conjunto, cujo principal elemento estava fora dele, aliás, dentro: o corpo da deusa morena sueca. A calcinha, bem visível, provavelmente era da grife indiana Kushmanda Overseas.

Aos poucos, depois de consultar seus oráculos, com previsões previsíveis, finalmente a deusa resolveu descer de Asgard e saiu-se muito bem. Primeiro mostrou conhecimento de macumbas em geral, disse que era filha de Iansã, e a conversa descambou para a vida no bairro. Ninguém mais viria e ela parecia não dar importância. Pensei em chamá-la para uma cerveja ali na esquina, mas achei conveniente permanecer no interesse por seu trabalho e perguntar se ela já tinha lido As Máscaras de Deus, de Joseph Campbel, e terminei perguntando mesmo e a resposta foi a melhor possível: Já lí, claro; você leu, ótimo. “Cara...” Essas reticências – poderiam ser exclamações - precisam ser entendidas como um olhar de agradável espanto por ter encontrado ali, na inauguração da Svartalfheim, alguém tão afinado com suas preferências.  

Cada coisa a seu tempo. Chamei para a cerveja. Descobri o melhor. A moça tinha os pés assentado no mundo, ou também, porque contou que o consultório Viking era apenas mais um negócio em sua pequena, mas diversificada vida empresarial. Já teve brechó, lojinha de produtos naturais e uma papelaria com viés origamista.

- A pior coisa do mundo é deixar de gostar – disse ela -. Não precisa nem ser de gente, um grande caso de amor acabado, uma amizade destruída aos poucos, por exemplo. Mas uma coisa, uma maneira de ser, uma música, um empreendimento. Foi o que aconteceu comigo, aliás, sempre acontece. Passei um tempo morrendo de medo de perder o interesse por moda – e perdi. A partir daí, não liguei mais para moda e segui em frente. Mas logo comecei a gostar de outras coisas e o medo voltou. Estou com medo de deixar de gostar as runas e da mitologia nórdica.

Qualquer psicanalista teria enxergado ali um problema. Eu enxerguei uma oportunidade. Ensaiei um “basta apenas gostar da vida” e achei meio óbvio, além de perigoso, pois ela poderia passar a desgostar da vida e aí fudeu.   Fui pelo mais fácil e lembrei como gostava de futebol quando era criança, passei um tempo sem gostar tanto, e depois voltei a gostar de novo. Além disso, a gente não precisa de tanta dedicação a um tema tão antigo e improvável, a não que esteja escrevendo uma tese sobre isso, e que aplicar esse tipo de coisa à vida prática é uma insanidade, no meu ponto de vista de descrente, mas essa parte eu só pensei, não disse.

Foi tudo muito rápido. A lojinha faliu e a deusa Hel não se abalou. Entregou o imóvel e desembarcou em minha casa com os apetrechos cerimoniais. O casamento foi uma cerimônia simples, sem sinais nórdicos, e vivemos quatro semanas e meia de paixão calorosa e alegre até ela anunciar que estava com medo. Com medo de deixar de gostar de mim. Aconteceu. Em duas semanas voou para a Califórnia para encontrar-se com um guru descoberto na internet - Um garoto cheio de vida, quase um surfista, parecido com o Thor do desenho animado.  Adeus, Asgard.




quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Deduções



Deixe de colocar minhoca na cabeça da minha mulher, sua danada. Vem cá, encosta aqui, fica pertinho. É o seguinte: você não pode insinuar que tem um caso comigo. Tecnicamente somos amantes. Sou amante da melhor amiga da minha mulher, veja só, parece pornochanchada. Você aqui, deitada, nua, e eu pensando na minha mulher e em sua amizade com ela. Você não diz nada? O problema é que você olha pra ela de um jeito muito sacana. Olha, sim. Como quem diz “to comendo seu marido”, e ainda tem aquela viradinha de cabeça, irônica e segura, quando ela fala da nossa vida de bem casados há dez anos. Uma eternidade e você aqui, no meio da história, se abastecendo de não sei o quê. Você é confidente da minha mulher. Que coisa! Ouço as risadinhas. Culpa nenhuma, né? Não sei como consegue.  Vamos fazer o que manda a cautela: tudo fica da mesma maneira. Segunda e quarta, no mesmo canto, aqui mesmo. Quando for a minha casa – você vai quase todos os dias – não dê bandeira. Caramba, vocês são amigas desde o século passado. Ela se refere a você com tanto carinho; nem de longe imagina esta cena. Dá um beijo, vai. Engraçado... Vocês duas são da mesma classificação que li no livro de Tolstoi: bonitas, misteriosas e originais. Ela carrega a desvantagem de não saber, mas atua nesse drama com elegância. Mas, peraí: ela não cogita essa hipótese ou sabe de tudo? O que você acha? Age com aquele ar distante para ser uma vítima quase sagrada diante dos outros, mas sabe que a gente não sabe que ela sabe. Aí é uma vantagem dela. Amo minha mulher, já disso isso. Amo você também, claro. Sei que você adora este triângulo. Quando falo dela parece o momento da colheita pra você. A melhor hora. Você faz tudo para chegar a isso: falarmos dela. Sua compensação é conversar sobre a onipresente. Linda, minha mulher, não é mesmo?  Você quer ter poder sobre ela porque não quer ficar comigo – ou quer, também -, mas seu alvo primário é outro. Vocês estão me traindo?

domingo, 2 de dezembro de 2012

Questões trabalhistas


Madrugada terrível. Só vi uma assim em Angústia, de Graciliano. Parecia que não ia acabar e eu não sabia o que seria melhor, acabar ou não. Caso a madrugada se congelasse ali, estaria de bom tamanho. De qualquer forma, a imagem do dia chegando gelava os nervos. Até o final da tarde, meu ego estava exposto à visitação pública, eu tomava minha cervejinha, ainda seguro, usufruindo a sobrevida. Agora, sou um homem aterrorizado. Um mês de férias. Um mês fora do inferno e amanhã, quer dizer, hoje, tudo recomeça.

Não gosto de trabalhar, pelo menos não gosto do meu trabalho. Detesto a empresa, meus colegas são insuportáveis e o salário é uma merda. Tenho cisma especial com o tipo que veste a camisa da empresa e adota seus conceitos de produtividade e resultados. Um dia é demitido, tenta voltar a falar como antes, mas não consegue. Vira um zumbi corporativo, pois, desempregado, perde o pé das mudanças no jargão empresarial e sai por ai, dizendo que isso e aquilo agregam valor. 

Quem conheceu sujeitos assim, como conheço, sabe do que estou falando. Mas a questão central aqui é a volta para o trabalho e o fim de uma série de prazeres reais, como ler até tarde, acordar tarde, almoçar a qualquer hora, andar sem destino. Um bom argumento para a volta - e explica em parte porque não me demito – é a necessidade do dinheiro.

Todos dirão isso, embora eu tenha em mente um sistema de trabalho mais flexível e não obrigatório, como, aliás, também poderia ser o voto. O governo e os empresários um dia terão que fazer isso porque o mundo do trabalho está a cada dia enxuto. O que fazer com o restante? Não se pode deixar a mão-de-obra excedente na miséria? Então, o trabalho torna-se um ambiente para pessoas realmente com vocação, entusiastas, empreendedores, as que se dizem felizes e realizadas como o que fazem. Não é o meu caso. Eu me sentiria feliz sem ir trabalhar todos os dias – melhor ainda, dia nenhum - e gostaria de receber por isso.

Não se trata de seguro-desemprego ou Bolsa Família. Pode ser um salário menor do que os trabalhadores formais, embora digno o suficiente para garantir aluguel, alimentação, lazer, transporte, cultura e plano de saúde. Uma espécie de vida sabática. As empresas continuariam seu modo capitalista e nós, não trabalhadores, teríamos enfim as delícias de um socialismo moreno, ou melhor, bronzeado.

Minha tese é obviamente mais complexa, envolve economia para as empresas em encargos trabalhistas e alguma contribuição dos desempregados em termos de conceitos existências. O problema é que agora estou com uma preguiça danada, amanhã volto ao trabalho e o dia já está amanhecendo.