Por que essa cara feia? Só perguntei se
tinha cigarros. Diga que não tem e pronto, sem discurso, sei dos males do fumo,
mata, aliás, não só o fumo mata, um monte de coisas mata, e a senhora também
vai morrer, mesmo sem fumar, sem beber, sem fazer nada. Pode até morrer de
tédio. Se eu fosse a senhora já estava morto, preferia. Pode viver mais uns
anos? E daí? Tudo termina do mesmo jeito.
Agora fudeu. O que Jesus tem a ver com
isso? A senhora acredita em Deus? Ótimo. Vá pro Céu e não me encha a paciência.
Vai fazer o quê no Céu? Ninguém sabe como é, ninguém sabe se existe, ninguém
sabe de nada. E se vai pro Céu depois de morta por que se preocupar em não
fumar? Não gosta de fumar, não fume, mas deixe os outros em paz.
Não estou irritado, não, foi a senhora que
começou. Fiz uma pergunta banal - “tem cigarros?” - e ouço mais do que um
“não”. Um olhar de censura, quase raivoso, como se eu estivesse atrás de
cocaína ou plutônio. Depois a senhora inicia a pregação religiosa, não somente
contra o tabaco, mas contra meu gesto, contra mim e mais adiante começa a me
enxergar como infiel, um homem sem Deus, um descrente. Não é da conta da senhora. Sou viciado, sim, mas mandaria a indústria do
cigarro pro inferno, pena que não há inferno, porque mandaria a senhora junto.
É cada uma. O comércio hostil, só faltava
essa. Se a moda pega, posso ser preso por pedir qualquer produto que o vendedor
não tem. Ali na esquina com certeza têm cigarros, na loja de conveniência, e
pergunto o que senhora tem feito em relação a isso. Vai jogar uma bomba na loja,
vai? Daqui a pouco essa sua obsessão vira terrorismo. Fanatismo do caralho.
Falo sim, caralho. Vai chamar a polícia? Pois chame. Eu devia ter comprado um
pacote no supermercado, a porra do supermercado só vende em pacotes, acho um
absurdo. Como também acho absurda a reação da senhora.
Seu guarda eu só perguntei se ela tinha
cigarros. Chamar a polícia por uma besteira dessas. Só que a vendedora queria
me converter à religião dela. Não gosto disso. Só queria um cigarro... Não, não.
Não agredi ninguém. Só reclamei do atendimento. Tudo bem, o senhor não fuma,
mas o que uma coisa tem a ver com a outra? É um produto vendido legalmente.
Nunca fumei em áreas proibidas, respeito a lei, não posso ser acusado de nada.
O quê? Ela disse que sou niilista? E daí?
Um niilista tentando comprar cigarros. É crime? Pode ligar pra
delegacia? Quer que eu explique o que é niilismo? Não quer, então pergunte ao
delegado; liga ai?
Não, a senhora está enganada; ela está
enganada, seu guarda. Niilistas não matam pessoas; é um conceito filosófico, a
desvalorização e a morte do sentido, a ausência de finalidade e de resposta ao
“porquê”. Li isso na Wikipédia e nem sou niilista, apenas um consumidor
exigindo respeito. Quer dizer que o delegado está procurando o crime de
niilismo no Código Penal? Não vai encontrar, seu guarda; é melhor ele consultar
Turgueniev, Dostoievski, esse pessoal. Máfia russa? Não é nada disso, seu
guarda.
Estão averiguando? Averiguando atividades
da máfia russa nessa área? Que loucura! Serviço Secreto da PM? Não se pode mais
fumar nesta cidade? O senhor está confundindo as coisas e essa mulher é louca.
Niilismo não é o nome de uma operação criminosa. O delegado disse que os
niilistas combatem as religiões? Onde ele leu isso, meu Deus? Só dizem que a
vida não tem sentido. Só isso. Não, não acho pouco, mas não é crime em lugar
nenhum.
Tudo bem, pode me levar, mas dá uma
paradinha naquele quiosque, por favor. Olha aqui o dinheiro, compra pra mim.
Obrigado, seu guarda. Valeu mesmo. É isso. Vermelho. Box.