terça-feira, 4 de outubro de 2011

Ciúmes transcendentais


ão comece uma história sem
saber como ela vai terminar
Sir Walter Rawley
Começou a namorar a logo descobriu um desafio a ser enfrentado: a moça é esotérica, daquelas bem plurais, sincrética até o último chacra, dona de um altarzinho com Buda, Shiva, Jesus, gnomos, iemanjá e a foto do Doutor Matias (1890-1954), um espírito de luz. O pacote inclui ainda Tarô, I-Ching, Búzios e algo chamado “Teoria das emas totalizantes”, mistura de cabala, ensinamentos de Lao-Tse e Física Quântica. Pelo menos foi o que ele entendeu, assim, meio por cima.
Por que um cético foi parar nessa? Ele explica: “a gata é inteligente, linda, cheirosinha e engraçada. O misticismo foi encoberto por esses predicados, mas agora tenho que encarar o incenso”. Dito isto, pelo próprio personagem, vamos adiante, sublinhando alguns conflitos da relação entre o incréu de botequim e a deusa candidata ao Nirvana.
Nesses casos, o cara não pode simplesmente detonar todas as teses da namorada. Primeiro porque são muitas, interligadas, cheias de nuances e citações de mestres desconhecidos. Seria também deselegante. Nada de posar de dono da verdade, mesmo convencido da impossibilidade daquele arranjo metafísico. Um sujeito qualquer teria aderido de vez às convicções astrais da garota em troca de uns amassos. Merecia. Ele, não. O herege romântico queria ser verdadeiro.
O jeito era escutar, fazer alguns paralelos antropológicos e literários (“oba, tem o Borges”) e dedicar-se com mais afinco à leitura de temas nunca dantes navegados. Pelo Google descobriu um mundo habitado por serpentes energéticas, editores com terceiro olho, criaturinhas luminescentes, deuses ETs e outros mistérios do universo além da vida e da morte. Só nas cartas, havia matéria para o resto da existência, com nomes e procedências variadas, desde egípcias, ciganas e marselhesas às das bruxas, de Crowley, de Wicca, de Dali, entre as de outros e outras. Aquele gibi fantástico era a religião da amada.
Como a vida não é apenas sexo, seria preciso penetrar (no sentido exegético, é claro), nos abismos filosóficos da moça. Com algum conhecimento, ele tentou obter mais detalhes com a própria, especialmente dados mitológicos, com os quais poderia manobrar com facilidade. Leu “O Poder do Mito”, de Joseph Campbell. Deu assim para ir levando, enquanto beijos, abraços e carinhos sem ter fim continuaram sendo a melhor coisa da vida, acima de todos os deuses, astros e estrelas.
Tudo caminhava bem no amor e no mundo das fadinhas. Até o dia em que ela anunciou a chegada de seu guru. A primeira imagem que lhe veio á cabeça não preocupava: um senhor idoso, barbudo e de cabelos brancos, magro como um faquir, casto e paterno. Mas no caso não era o caso. Apareceu o guru. Um garoto cheio de vida, quase um surfista, mas certamente dotado de rara sabedoria para envolver suas seguidoras em inebriantes transes e transas. O pior estava por vir – e veio: sexo tântrico, ritual necessário à compreensão do corpo e da alma. Ela tentou explicar, “é só a teoria, não se preocupe”, mas não deu certo.
O ateu, até então compreensivo, foi tomado pelos mais baixos instintos e toda aquela intersecção entre filosofia e misticismo foi por água abaixo. Ele bateu pé, não quis que o guru californiano ficasse hospedado na casa da namorada e muito menos viesse com essa conversa de sexo tântrico, teórico ou prático. Nem pensar. Ela chorou, mas a decisão estava tomada: guru e sexo tântrico.
Poucas horas depois, já entorpecido por substâncias terrenas – sete cervejas e meia garrafa de uísque –, começou a relembrar o sorriso da ex-namorada, a Sininho da Vila Madalena. Depois passou a maldizer o guru e o chifre transcendental talvez já acontecendo, numa trepada de hiper-orgasmos e algo mais acima da compreensão humana. Também soltou impropérios contra o politeísmo ingrato e traidor. Enquanto isso bebia álcool e lágrimas para aplacar sua alma de descrente e a dor do abandono.
O bolero seguiu em frente, noite adentro, e ele só acordou muitas horas mais tarde nos braços ternos de Sininho, refeita de sua experiência tântrica com o guru e inteiramente a postos para aplicar seus novos conhecimentos com o homem de sua vida. O cenário não era o bar, mas um lugar estranho e agradável. O paraíso na Terra ou fora dela. Todas as visões do Éden estavam ali reunidas, com seres outrora imaginários em festa pela união do casal. Não havia tempo e todos podiam voar sobre as enormes cachoeiras, florestas infinitas e cidades limpas e fenomenais. Ao lado de dois dragões bonzinhos, quatro duendes, um par de Teletubbies e divindades de toda natureza, ele pode perceber a presença do guru californiano. Para seu alívio não tinha sexo, apenas a palavra “Aeon”, em grego, tatuada na virilha, e estava cercado de borboletas gigantes e tagarelas. Naquela dimensão desconhecida, ele e Sininho iniciaram um jogo de carícias em que cada orgasmo equivalia a um Bing bang.
Pena. Era delírio alcoólico. Pena. Este final medíocre.

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