Descia a escada, com cem páginas debaixo do braço, tropeçou no
cadarço, sempre mal atado; caiu e morreu.
Duas horas antes: escrevo um livro de memórias; sou velho,
espero que dê tempo de terminá-las. Pedi a um amigo para cuidar do preâmbulo.
Caso algo me aconteça, morte ou perda de memória, ele se encarrega do começo do
livro, informando como findei. O texto com início dele será a apresentação da
autobiografia. Duas horas antes, dois pontos, também é ideia minha. Poderia ser
anos antes, minutos antes, qualquer tempo – um truque barato de cinema. Isso aí
depende dele. Só quero começar pelo fim.
Faço anotações: oitenta anos não é mole. Com oitenta anos, já
vimos quase tudo e não lembramos quase nada. Aposto em quase nada. Cheguei aqui
insatisfeito, querendo mais, umas linhas a mais, pelo menos, porque no meu caso
só resta descrever. Não há vida, na prática, só um velho sentado, escrevendo o
passado, tentando uma vaguinha na posteridade. A vaidade vai até o fim e
queremos ultrapassar o fim sem perder a importância. Deixar uma marca.
...
Tonturas são normais, velhas conhecidas, e sei lidar com elas.
Sei lidar também com meu corpo estranho há muito tempo. Tenho sintomas
clássicos de doenças terríveis, mas não vou ao médico, nunca fui nas últimas
sete décadas. Então surgem manchas, tosses, gânglios linfáticos, uma bolota sob
a pele que dói e se move. Depois tudo some sem deixar sinais. Não ligo nem procuro
respostas. Pior seria um diagnóstico apressado, capaz de matar com a rapidez de
uma insidiosa moléstia, como se dizia antigamente. A cara solene do médico, seu
olhar superior, determinante, dando um prazo de seis meses ou menos.
Morre-se ali, no diagnóstico, e todos os outros medos são superados,
inclusive o pânico de descer escadas como se estivesse descendo de costas ou de
olhos fechados.