quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Impasse



Temem dizer o que foi dito. Medo da repetição. Eles estão num impasse. Nenhum idéia nova para anunciar com entusiasmo. Pensam, vez ou outra, numa história com cara de inédita, mas descobrem que a história já existe, ou parte dela, segundo o Google. Por isso, só fazem colagens. Quando dão por si, a própria ironia pertence a terceiros. Com outras palavras, o ganancioso Voltaire já usou a mesma coisa, há trezentos anos.  Uma parábola da Bíblia está por trás de continhos, a mitologia grega no fundo de romances e ainda tem Shakespeare, bem e mal recontado.

O originalidade pertence ao passado, conforme eles acham, embora não desistam da procura inútil em situações de suas próprias vidas. Mas estas também se reprisam, dia e noite, como se o estoque de sensações e gestos humanos tivesse um limite definido e já usado. Trabalham, então, com o bagaço, e citação diluída dos autores de sempre, alguns mortos há séculos.


Até o discurso de que tudo já foi feito, já foi feito.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A difícil arte de compor um titulo literário


Por Homero Fonseca


Uma das coisas mais difíceis para um escritor, ao que percebo, é compor o título de seus romances.

Antes era fácil: colocava-se o nome do personagem principal (Iracema, Dom Casmurro), lançava-se mão de pares antagônicos com forte carga emocional (Guerra e Paz, Crime e Castigo), simplificava-se com um substantivo comum, mas expressivo (A metamorfose, A peste) ou apelava-se para uma fórmula poética (Em busca do tempo perdido, O inverno da nossa desesperança). Do tipo instigante, havia um monte: Coração das trevas (Conrad), Viagem ao Fim da Noite (Céline), Retrato do Artista Quando Jovem (Joyce), As Vinhas da Ira (Steinbeck), Se um viajante numa noite de inverno (Calvino), Enquanto Agonizo (Faulkner), A Laranja Mecânica (Burgess) ou Por quem os sinos dobram (Hemingway).

Eventualmente, gente muito boa sucumbia a alguma fórmula pretensiosa, tipo A Condição Humana (Malraux), O Século das Luzes (Carpentier) ou Uma Tragédia Americana (Theodore Dreiser). Outros, eram diretos, contundentes, provocadores: Fome (Hamsun) e Os cus de Judas (Lobo Antunes). Sempre os houve bisonhos, como A Educação de Henry Adams, de Henry Adams, e Grande Sertão: veredas, do nosso genial Rosa. Ou mesmo exemplos desastrosos: O sol também se levanta (que descoberta espantosa!), daquele mesmo Hemingway, e O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger (este merecerá um comentário especial, adiante).

Entretanto, de uns tempos para cá (coincidindo com o domínio da teoria na literatura, quando os escritores passaram a escrever para os críticos e os outros escritores, desdenhando os leitores) parece haver sido deflagrada uma competição pelo título mais esquisito. São termos abstratos, destituídos de sentido apreensível, combinados aleatoriamente. Muito cotados são os oxímoros gratuitos (O gelo quente) ou aqueles que não têm absolutamente nada com o texto. E o máximo é a combinação dessas duas últimas características.

Basta percorrer com alguma pachorra as estantes das livrarias, para topar com coisas como: Aprendizagem do cuspe e outros esplendores, Corações encardidos de blues, A vida secreta do quadrilátero, Memórias artificiais das orquídeas roucas, Metonímia da urgência dilacerada, Sombrias nuvens sólidas, A viagem ausente, Swlasanie Sunda Opat, Antes que a lua, O tédio do abismo e o porco, O enigma do espelho do duplo labirinto. (Ao leitor mais crédulo: não procure esses títulos na internet. São todos inventados.)

Não sei se já foi feito algum estudo sistemático sobre títulos literários (valeria a pena, inclusive apontando as preferências de épocas e suas possíveis motivações). Com certeza, tal pesquisa revelaria casos interessantes de livros triunfantes, apesar do título, como é o caso do extraordinário romance citado do nosso Guimarães Rosa, cujo título, ao meu ver, não faz jus à potência do texto. Grande sertão tudo bem, dá uma ideia do vasto espaço geográfico cenário das aventuras e reflexões de Riobaldo Tatarana. Mas os dois pontos, seguidos da palavra Veredas, sempre me pareceram uma demasia, uma informação boba, um penduricalho. Parece ser um caso de obra que se impõe por sua qualidade, apesar desse ou outros senões. Também existem títulos excelentes para livros fracos, como todo mundo já se iludiu um dia.
Que fique claro que não estou defendendo títulos óbvios, mas chamando a atenção para possibilidades: ótimos livros com títulos nem tanto ou ótimos títulos para livros nem tanto.

O caso mais curioso de todos é O apanhador no campo de centeio, de Salinger. O apanhador no campo de centeio? O que diabo isso quererá dizer? Não tem sentido. No original: The catcher in the rye. Isso também não faz sentido para a maioria dos falantes de inglês. Rye, tudo bem: é campo de centeio, literalmente. Mas: catcher? Vem do verbo to catch, que significa: agarrar, apanhar, capturar, alcançar, pegar. Então, literalmente é O apanhador no campo de centeio. O problema é que o significado mais difundido de catcher, pelo menos nos Estados Unidos, é o jogador de beisebol, o cara com uma máscara de ferro que se agacha atrás do rebatedor para agarrar a bola que esse não conseguir acertar com o bastão. Mesmo quem não conhece bulhufas de beisebol, feito eu, saca a figura, bastante frequente em filmes hollywoodianos. Bom, é aí que os próprios gringos se enrolam: o que estará fazendo um catcher num campo de centeio? O título é enigmático.

Os leitores atentos encontrarão o trecho do livro de onde foi retirado o título. É quando o adolescente Holden Caulfield, protagonista da história, conta à sua irmã Phoebe que sonha estar num campo de centeio, à beira de um precipício, onde milhares de garotinhos cantam uma canção: "Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer."

Holden, adolescente revoltado, confessa à irmã menor ter, no fundo, um ideal de generosidade, solidariedade, ao salvar os guris do abismo. Então, tá explicado. Mas não é tão simples assim. Para complicar as coisas, na mesma cena Holden revela que a imagem do catcher in the rye era de conhecida canção infantil – a que os meninos cantavam. Mas Phoebe, estudiosa que só, corrige o mano: a expressão original não está na canção, mas num poema de Robert Burns e o verbo não era to catch (apanhar, agarrar) e sim to meet (encontrar-se com). É aí que a coisa se complica, pois o poema, escrito em escocês do século 18, narra a história de Jenny, uma pobre garota que arrasta sua saia molhada por um campo de centeio, quando se encontra com alguém (meets). O poema do bardo escocês tem clara conotação erótica, e esse encontrar, no contexto, é o mesmo que transar, pegar alguém. Tudo isso ficaria ao largo se o autor não houvesse metido Burns na história.

Quanta confusão, quantos mistérios jogados num título que, afinal, resta absolutamente incompreensível para a maioria dos leitores. O velho Salinger exagerou na dose nesse caso, talvez sob a influência de Joyce que se jactava de no Ulisses haver “plantado” centenas de enigmas que os professores levariam séculos para decifrá-los.

Pois bem, apesar do título não ajudar em nada, a obra prima de Salinger tornou-se um clássico, continua sendo reeditada em todo o mundo, encantando milhões de leitores com sua narrativa extraordinariamente fluida e seu personagem construído com uma verdade plena de empatia. Ou seja, apesar do título esquisito, a qualidade do romance se impôs aos leitores.
Um último toque: mais do que o original em inglês, O apanhador no campo de centeio soa ainda mais estranho, pois beisebol não é esporte popular por aqui e pouquíssimos brasileiros conhecem alguma roça de centeio, pois o grão é cultivado no Brasil em exíguos três ou quatro mil hectares em pequenas fazendas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, principalmente. O embaixador Jorio Dauster, um dos tradutores do livro, conta as circunstâncias curiosas da tradução. Ele e seus companheiros Álvaro Alencar e Antônio Rocha logo perceberam que a tradução literal soaria incompreensível ao leitor brasileiro. Para eles, “intitular um livro Apanhador no campo de centeio seria como dar algum nome esdrúxulo a uma bela criança, seria condená-lo à mais absoluta rejeição”. Quebraram a cabeça e depois de inúmeras tentativas, chegaram à solução A sentinela do abismo, em total coerência com o teor do texto, mantendo o mesmo tom de mistério, e muito menos esdrúxula.

Entretanto, o ermitão rabugento, por meio de sua agente literária, exigiu uma tradução literal. E repetiu-se o fenômeno: apesar do horrível apanhador e da plantação desconhecida, o livro emplacou entre nós, como em todo o mundo. Certamente, por sua qualidade intrínseca. Mas, eu pergunto se um outro fator não teria talvez pesado na sua aceitação: a sonoridade e a cadência. O-apanha-dor-no-cam-po-decenteio. Um fenômeno parecido ao que faz multidões de semiletrados, por esse Brasilzão afora, continuarem admirando e repetindo os versos rebuscados e preciosistas do Augusto dos Anjos do “Eu”.
(O saboroso artigo de Jorio Dauster, com sensacionais revelações sobre a tradução portuguesa, está no site do jornal Candido: http://goo.gl/shVmdm

Por fim, e voltando aos contemporâneos, sugiro ao autor embatucado em encontrar um título para seu romance, assistir ao filme Domicílio conjugal,  de François Truffaut. Numa cena, o protagonista Antoine Doinel – que está escrevendo seu primeiro livro – confessa ao quitandeiro, que perguntara sobre o andamento da obra, sua dificuldade em criar um título perfeito. Ao que o bom homem pergunta: – Tem trompete no livro? – Não. – Tem trombone? – Não. – E então!  –Então o quê? Não entendi. – Ponha o título Nem trompetes, nem trombones.