Por
Homero Fonseca
Uma
das coisas mais difíceis para um escritor, ao que percebo, é compor o título de
seus romances.
Antes
era fácil: colocava-se o nome do personagem principal (Iracema, Dom Casmurro),
lançava-se mão de pares antagônicos com forte carga emocional (Guerra e Paz,
Crime e Castigo), simplificava-se com um substantivo comum, mas expressivo (A
metamorfose, A peste) ou apelava-se para uma fórmula poética (Em busca do tempo
perdido, O inverno da nossa desesperança). Do tipo instigante, havia um monte:
Coração das trevas (Conrad), Viagem ao Fim da Noite (Céline), Retrato do
Artista Quando Jovem (Joyce), As Vinhas da Ira (Steinbeck), Se um viajante numa
noite de inverno (Calvino), Enquanto Agonizo (Faulkner), A Laranja Mecânica
(Burgess) ou Por quem os sinos dobram (Hemingway).
Eventualmente,
gente muito boa sucumbia a alguma fórmula pretensiosa, tipo A Condição Humana
(Malraux), O Século das Luzes (Carpentier) ou Uma Tragédia Americana (Theodore
Dreiser). Outros, eram diretos, contundentes, provocadores: Fome (Hamsun) e Os
cus de Judas (Lobo Antunes). Sempre os houve bisonhos, como A Educação de Henry
Adams, de Henry Adams, e Grande Sertão: veredas, do nosso genial Rosa. Ou mesmo
exemplos desastrosos: O sol também se levanta (que descoberta espantosa!),
daquele mesmo Hemingway, e O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger
(este merecerá um comentário especial, adiante).
Entretanto,
de uns tempos para cá (coincidindo com o domínio da teoria na literatura,
quando os escritores passaram a escrever para os críticos e os outros
escritores, desdenhando os leitores) parece haver sido deflagrada uma competição
pelo título mais esquisito. São termos abstratos, destituídos de sentido
apreensível, combinados aleatoriamente. Muito cotados são os oxímoros gratuitos
(O gelo quente) ou aqueles que não têm absolutamente nada com o texto. E o máximo
é a combinação dessas duas últimas características.
Basta
percorrer com alguma pachorra as estantes das livrarias, para topar com coisas
como: Aprendizagem do cuspe e outros esplendores, Corações encardidos de blues,
A vida secreta do quadrilátero, Memórias artificiais das orquídeas roucas,
Metonímia da urgência dilacerada, Sombrias nuvens sólidas, A viagem ausente,
Swlasanie Sunda Opat, Antes que a lua, O tédio do abismo e o porco, O enigma do
espelho do duplo labirinto. (Ao leitor mais crédulo: não procure esses títulos
na internet. São todos inventados.)
Não
sei se já foi feito algum estudo sistemático sobre títulos literários (valeria
a pena, inclusive apontando as preferências de épocas e suas possíveis motivações).
Com certeza, tal pesquisa revelaria casos interessantes de livros triunfantes,
apesar do título, como é o caso do extraordinário romance citado do nosso
Guimarães Rosa, cujo título, ao meu ver, não faz jus à potência do texto.
Grande sertão tudo bem, dá uma ideia do vasto espaço geográfico cenário das
aventuras e reflexões de Riobaldo Tatarana. Mas os dois pontos, seguidos da
palavra Veredas, sempre me pareceram uma demasia, uma informação boba, um
penduricalho. Parece ser um caso de obra que se impõe por sua qualidade, apesar
desse ou outros senões. Também existem títulos excelentes para livros fracos,
como todo mundo já se iludiu um dia.
Que
fique claro que não estou defendendo títulos óbvios, mas chamando a atenção para
possibilidades: ótimos livros com títulos nem tanto ou ótimos títulos para
livros nem tanto.
O
caso mais curioso de todos é O apanhador no campo de centeio, de Salinger. O
apanhador no campo de centeio? O que diabo isso quererá dizer? Não tem sentido.
No original: The catcher in the rye. Isso também não faz sentido para a maioria
dos falantes de inglês. Rye, tudo bem: é campo de centeio, literalmente. Mas:
catcher? Vem do verbo to catch, que significa: agarrar, apanhar, capturar,
alcançar, pegar. Então, literalmente é O apanhador no campo de centeio. O
problema é que o significado mais difundido de catcher, pelo menos nos Estados
Unidos, é o jogador de beisebol, o cara com uma máscara de ferro que se agacha
atrás do rebatedor para agarrar a bola que esse não conseguir acertar com o
bastão. Mesmo quem não conhece bulhufas de beisebol, feito eu, saca a figura,
bastante frequente em filmes hollywoodianos. Bom, é aí que os próprios gringos
se enrolam: o que estará fazendo um catcher num campo de centeio? O título é
enigmático.
Os
leitores atentos encontrarão o trecho do livro de onde foi retirado o título. É
quando o adolescente Holden Caulfield, protagonista da história, conta à sua
irmã Phoebe que sonha estar num campo de centeio, à beira de um precipício, onde
milhares de garotinhos cantam uma canção: "Sabe o quê que eu tenho de
fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um
deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum
canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o
apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa
que eu queria fazer."
Holden,
adolescente revoltado, confessa à irmã menor ter, no fundo, um ideal de
generosidade, solidariedade, ao salvar os guris do abismo. Então, tá explicado.
Mas não é tão simples assim. Para complicar as coisas, na mesma cena Holden
revela que a imagem do catcher in the rye era de conhecida canção infantil – a
que os meninos cantavam. Mas Phoebe, estudiosa que só, corrige o mano: a
expressão original não está na canção, mas num poema de Robert Burns e o verbo
não era to catch (apanhar, agarrar) e sim to meet (encontrar-se com). É aí que
a coisa se complica, pois o poema, escrito em escocês do século 18, narra a
história de Jenny, uma pobre garota que arrasta sua saia molhada por um campo
de centeio, quando se encontra com alguém (meets). O poema do bardo escocês tem
clara conotação erótica, e esse encontrar, no contexto, é o mesmo que transar,
pegar alguém. Tudo isso ficaria ao largo se o autor não houvesse metido Burns
na história.
Quanta
confusão, quantos mistérios jogados num título que, afinal, resta absolutamente
incompreensível para a maioria dos leitores. O velho Salinger exagerou na dose
nesse caso, talvez sob a influência de Joyce que se jactava de no Ulisses haver
“plantado” centenas de enigmas que os professores levariam séculos para decifrá-los.
Pois
bem, apesar do título não ajudar em nada, a obra prima de Salinger tornou-se um
clássico, continua sendo reeditada em todo o mundo, encantando milhões de
leitores com sua narrativa extraordinariamente fluida e seu personagem construído
com uma verdade plena de empatia. Ou seja, apesar do título esquisito, a
qualidade do romance se impôs aos leitores.
Um
último toque: mais do que o original em inglês, O apanhador no campo de centeio
soa ainda mais estranho, pois beisebol não é esporte popular por aqui e pouquíssimos
brasileiros conhecem alguma roça de centeio, pois o grão é cultivado no Brasil
em exíguos três ou quatro mil hectares em pequenas fazendas no Rio Grande do
Sul e Santa Catarina, principalmente. O embaixador Jorio Dauster, um dos
tradutores do livro, conta as circunstâncias curiosas da tradução. Ele e seus
companheiros Álvaro Alencar e Antônio Rocha logo perceberam que a tradução
literal soaria incompreensível ao leitor brasileiro. Para eles, “intitular um
livro Apanhador no campo de centeio seria como dar algum nome esdrúxulo a uma
bela criança, seria condená-lo à mais absoluta rejeição”. Quebraram a cabeça e
depois de inúmeras tentativas, chegaram à solução A sentinela do abismo, em
total coerência com o teor do texto, mantendo o mesmo tom de mistério, e muito
menos esdrúxula.
Entretanto,
o ermitão rabugento, por meio de sua agente literária, exigiu uma tradução
literal. E repetiu-se o fenômeno: apesar do horrível apanhador e da plantação
desconhecida, o livro emplacou entre nós, como em todo o mundo. Certamente, por
sua qualidade intrínseca. Mas, eu pergunto se um outro fator não teria talvez pesado
na sua aceitação: a sonoridade e a cadência. O-apanha-dor-no-cam-po-decenteio.
Um fenômeno parecido ao que faz multidões de semiletrados, por esse Brasilzão
afora, continuarem admirando e repetindo os versos rebuscados e preciosistas do
Augusto dos Anjos do “Eu”.
(O saboroso artigo
de Jorio Dauster, com sensacionais revelações sobre a tradução portuguesa, está
no site do jornal Candido: http://goo.gl/shVmdm
Por
fim, e voltando aos contemporâneos, sugiro ao autor embatucado em encontrar um
título para seu romance, assistir ao filme Domicílio conjugal, de François Truffaut. Numa cena, o
protagonista Antoine Doinel – que está escrevendo seu primeiro livro – confessa
ao quitandeiro, que perguntara sobre o andamento da obra, sua dificuldade em
criar um título perfeito. Ao que o bom homem pergunta: – Tem trompete no livro?
– Não. – Tem trombone? – Não. – E então!
–Então o quê? Não entendi. – Ponha o título Nem trompetes, nem
trombones.