Quanto
mais durmo, mais economizo. Ruim é achar onde dormir até mais tarde. No abrigo,
temos que acordar cedo; na rua o problema são os passinhos, bem perto do meu
ouvido, sapatos de vários tipos, sons diferentes, sem padrão. Fosse um toc, toc
constante, em ondas, eu ganharia umas horas. Só não sei para quê. Acordar,
comer, calcular, dormir de novo e comer de novo caso consiga comida, mas
aparece nem que seja uma sopa, e eu detesto sopa, e no último caso tem o lixo.
Um dia achei um filé inteiro.
Mesmo
assim, nessas atribulações, consigo economizar algum. Pequenos serviços. Outro
dia ajudei uma moça a carregar dois sacos de roupa. Ela disse que era para
vender no interior. Ganhei cinco reais. Nem esperava tanto. Também achei um
celular e recebi uma recompensa boa, de vinte reais.
Não
bebo. A verdade é que não bebo desde que vim para a rua. No entanto, participo
da pequena vida social da praça. Todo mundo contando vantagens que se foram, se
é que falam a verdade. De resto, lamentações e planos. Lá no canto, um grupinho
divide uma garrafa de vinho barato e umas pedras de crack.
Eu
falo muito porque os outros são quase silenciosos. Pelo menos os do meu grupo,
homens de meia idade. Tenho agonia quando fica aquele silêncio e então começo.
Se não tenho um assunto recente, explico para eles por que não acredito em
discos voadores - o que as pessoas veem são aglomerados de partículas, mini
galáxias, em movimentos sem lógica para nossa imaginação, especialmente para a
de vocês, digo a eles, esperando uma intervenção e nada. Só no fim da história,
alguém diz "pois é" ou algo como "Deus escreve certo por linhas
tortas". Eu nunca esperei mais do que isso.
O
grupo é pequeno, gente mais cautelosa, sempre num relacionamento complicado com
os drogados, pois no fundo não sabemos quem está certo. Talvez sejam eles.
Mesmo assim não vou arriscar outro passo em falso na vida. Na verdade não sei.
Eles estão fazendo uma escala na viagem para a morte, mas eu vou direto e, no
fim, dá na mesma. Às vezes eu penso assim, às vezes não. Pode ser apenas um
monte de átomos em movimentos bizarros e quando a gente morre os átomos vão
embora sem a menor cerimônia. Pode ser ainda uma alma imortal sujeita a
julgamento e outros processos e, pensando nessa hipótese, eu evito experimentar
essas coisas. O que mais faço na rua é pensar.
Aos
poucos, a gente se acostuma. Bate nessa condição e fica, vai ficando, sem
muitas providências para sair. Também aos poucos o que restava fora da rua vai
sumindo. Mas ainda penso em Margô, minha ex-mulher. Não tivemos filhos. Não
tenho mais tantas ligações genéticas com o mundo. Daí a falta de entusiasmo
para voltar, empenhar um tremendo esforço que ao final pode ser insuficiente e
só capaz de levar-me à depressão e ao desentendimento. Então, vou aos poucos.
Estive numa espécie de curso para moradores de rua, os sem-teto, e só posso
dizer que minhas perguntas não foram respondidas. Serviu para passar o tempo e
havia lanche.
Na
rua, você precisa estar atento, informado sobre as possibilidades da próxima
refeição. Existe o abrigo, cheio de regras e horários, mas descobrimos que
muitos restaurantes e bares jogam pão fora no final do dia e dele nos servimos.
Raramente recorro às minhas economias para um refrigerante. Um sujeito da praça
gosta esbanjar e compra água mineral com gás. Pede dinheiro para dar-se a esse
luxo e ainda posa de bacana num ambiente em que não existem bacanas de nenhuma
espécie. Um dia vi o cara bebendo um café espresso.
Vivo
assombrado comigo, mas procuro manter a linha. Banho todos os dias, roupa
lavada uma vez por semana e um jogo mental diário para não ficar louco. Muita
gente embarca nessa viagem e perde o juízo. Ontem mesmo, vi uma mulher numa
fictícia ligação telefônica com um povo distante - Os Proparoxítonas. Na calma
dá para montar a história dessas pessoas porque aqui normal e anormal se
misturam, estão em único lugar ao mesmo tempo, caso se considere o tempo nessas
bandas. Basta dar como possibilidade que o absurdo faz parte, qualquer coisa é
possível, conforme preveem nossos avanços no ramo da Incerteza. Como se vê,
minha aparente lucidez, quase forçada, não impede um mergulho nas cabeças mais
distintas e suas oscilações entre loucura e indiferença. Às vezes confundo os
lados.
Vivemos
num horizonte de eventos, esperando a salvação, mas não acontece nada demais na
rua. Ocorre mais na mente das pessoas, voltadas para o passado, enquanto o
futuro se expande, fica cada vez mais rápido e distante. Conheço vários com
experiência, mas de que adianta? A cada dia coisas novas são criadas, engolindo
as antigas, deixando para trás quem conheceu o início de determinada
tecnologia, mas que não terá tempo hábil de vida para criar novas
possibilidades, pensar em longo prazo. Então os mais novos vão tomando conta,
como sempre ocorreu. A tribo não precisa de anciãos.
A
vida é assim, eu penso. Quem não juntou dinheiro corre o risco de parar na
Patriarca porque à falta de emprego se junta a vontade de não trabalhar, embora
eu conheça muitos capazes de ganhar um dinheirinho honesto e informal com seu
minúsculo comércio de balas e chocolates ou cigarros por unidade. Eu queria
voltar à minha profissão, mas fiquei desatualizado e aqui não é um lugar de
troca de ideias na área da Física de Partículas, por exemplo. Quando eu falo
que um elétron pode mudar de órbita sem passar pelo espaço intermediário, eles
me olham com certo descaso, como se perguntassem “e daí?”.
Portanto,
não dá para manter o orgulho se me dão pouco valor. Mas alimento o egocentrismo
como substituto de segunda linha, negócio de outra categoria, mas em condições
de manter o mínimo de satisfação comigo mesmo. Sou egocêntrico, não egoísta. É
diferente. Posso dar minha roupa ao próximo se ele mostrar algum sinal de
admiração por mim. Não quero poder; quero glória. Até mesmo neste buraco,
procuro compensações.
Queria
ser reconhecido pelo menos como o Aliócha de Dostoiévski, levando a vida sem
qualquer esforço e qualquer humilhação, como bem descreve o autor, e quem me
desse guarida achasse isto um prazer e não um fardo. Pena não funcionar assim,
nem mesmo tendo um quarto de pensão eu poderia exercitar um personagem mais
digno e com alguma justa vaidade. No meu caso, o pior da pobreza é a comparação
com dias melhores. Nem sei se eram tão melhores; eram mais confortáveis.
Tudo
começa com um pequeno desastre, quase uma singularidade. Sem querer derramei
cerveja em seu vestido novo e a má vontade de Margô cuidou de transformar o
incidente numa tragédia. Estava cheia de mim, deu-se para ver, todos viram, o
jeito dela olhando para mim - uma geleira com raiva. Nos dias seguintes, a má
notícia da minha demissão. Ela ouviu calada e depois, sem um pio de consolo,
perguntou se eu tinha alguma coisa em vista. Vou mandar o currículo, eu disse.
Você sabe que só isso não adiante, respondeu Margô. Você também precisa parar
de beber, acrescentou ela, ainda mais séria.
Antes
a vida tinha os ingredientes necessários. Um apartamento comprado à prestação,
carro e vaga na garagem. Eu ensinava Física numa escola particular e Margô era
funcionária pública concursada; ainda é, eu acho. Ela tinha o dinheiro dela, eu
tinha o meu, e assim a contabilidade dava certo, mesmo com meus gastos com
álcool e às vezes com outras substâncias. Perdi o emprego e perdi a liberdade.
No começo Margô deixava umas notas em cima de mesa, mas com o tempo elas sumiram.
Não cobrei. Continuei a procurar emprego, num momento difícil do País, e não
encontrei sequer uma promessa. Aí um dia Margô disse chega, me deu cinco mil
reais e me mandou embora. Ela tinha suas razões.
Pode
ter sido tarde. Mesmo assim parei de beber. Fui para uma pensão do centro, mas
logo o dinheiro acabou e caí na Praça do Patriarca, dormindo sob uma marquise,
minha estreia. É como pular de um universo para outro, onde as leis da física
são diferentes, bizarras, nada combinam com nada. Em minha cama improvisada,
feita de papelão e plástico de bolhas, passo o braço para encostar em a Margô,
meio sonado, e só há um buraco na calçada; minha mão tateando na realidade.
Outras vezes sonho estar acordando em minha casa, pronto para calçar meus
chinelos, e acordo com o clarão da cidade. Mal comparando é como a Terra sem a
proteção da atmosfera.
Chego
a pensar que só o espaço do pensamento vale a pena. Dentro da minha cabeça
existe outro mundo como existe outro mundo no mundo das partículas. Domino seu
interior, viajo pelo espaço, frequento bons restaurantes. Há uma projeção de
mim que se dá bem, um físico notável, prêmio Nobel, e caso haja outra dimensão,
do jeito que imaginam agora, posso dizer que dei a este lugar paralelo a minha
consciência e as minhas sensações. Bastar estar só para ser aquele que não sou
aqui e agora.