São
Paulo, Rio, Recife, Flip (julho)
sábado, 27 de abril de 2013
sexta-feira, 26 de abril de 2013
OVO
Quando
era criança ouvia o pai repreender a mãe por procurar cabelo em
ovo. Ele ficava torcendo para ela achar, pois nesse tempo ainda não
era versado em expressões idiomáticas e não via nada demais em um
ovo ter cabelo. Afinal, a pequena estrutura já era esplêndida por
natureza, inteiramente fechada e branca, num arredondamento perfeito,
sem sinais de entrada, mesmo secreta, impossível, por exemplo, de
ser aberta como se abre hoje um kinder ovo. O cabelo seria mero
ornamento externo, igual às perucas coloridas do carnaval. Não
havia uma marca, uma divisão, uma área desatarraxável, uma saída
ao estilo do cubo mágico, geometricamente favorecido por seu formato
quadrado. Para se chegar à clara e à gema, apenas uma solução
deselegante: quebrar a casca, de preferência contra a borda da
frigideira. Depois, o conteúdo do ovo era frito e comido, sem a
menor reflexão sobre a falta de suavidade e estilo.
segunda-feira, 22 de abril de 2013
Elas por elas
Minha
coleção de virtudes está incompleta. Falta uma figurinha
carimbada: não lhe dei atenção no momento crucial, quando veio a
doença, junto com suas necessidades práticas – o plano de saúde
ou um pedido a um velho conhecido da política, bastante para uma
internação gratuita em melhores condições, num hospital público.
Faltou-me dinheiro e iniciativa e eu esperei em casa, sob os
edredons, no inverno de 1990, enquanto ela buscava tratamentos
alternativos, que nunca dão certo.
O
homem bom, o cara legal, sempre reconhecido pelo caráter impecável,
ficou parado, esperando que tudo se resolvesse por conta própria ou
por intervenção de terceiros. Ela não morreu, mas perdeu o viço,
envelheceu dez anos em poucos meses, e a capacidade de tomar conta de
si foi sumindo até desaparecer. Não havia mais ninguém entre os
velhos amigos e seu pequeno mundo não tinha parentes providenciais.
Meu único gesto digno foi empurrar a cadeira de rodas na saída da
enfermaria, pagar um táxi e levá-la para minha casa, deixando-a na
edícula como um animalzinho ferido.
Nenhuma
reclamação da parte dela. Parecia ir morrendo aos poucos, calada,
tentando sorrir à força para agradecer minha atenção tardia. Daí
em diante, tentei manter os cuidados, mas era um pouco tarde, talvez
tarde demais. Dava-lhe comida na boca, providenciava o banho,
mudava-lhe a roupa. Depois saía e procurava esquecer esse transtorno
na minha vida. Ia a bares, bebia com outras mulheres e contava a elas
essa história triste, sem entrar em pormenores, sem a causa.
Um
salto mortal para o passado, como se fosse
possível, e estamos nos anos oitenta do século vinte. Uma vida
feliz de casal. Unha e carne, como diziam, juntos como duas ratazanas
de padaria, bichinhos conhecidos pela fidelidade mútua. Até o dia
em que ela conheceu a mulher de sua vida. Duas mulheres juntas ainda
era um tabu, naquele tempo, e me senti duplamente traído. No fundo,
minhas ações posteriores foram motivadas por vingança, orgulho e
preconceito, embora ainda não tivesse lido Jane Austen e se tivesse
dava na mesma. Literatura não resolve tudo, como de resto quase nada
resolve alguma coisa. No fim, como sempre, dá merda. Assim é a vida
e a morte, o ciclo imperfeito, e pensei na época que seu eu fosse
bom ou mau seria indiferente. Não há Deus para acudir a gente, como
pensam por aí, mas sentia falta de Deus, especialmente um deus que
tomasse providências, evitasse o declínio da nossa existência. Não
havia. Tudo é acaso e nossas grandes e pequenas desgraças ocorrem
com frequência porque Ele não existe e se existe fica apenas
observando o circo pegar fogo.
Eu
pensava muito nisso. Se Deus existe nem precisa do diabo, exerce os
dois papéis. Dá o frio e tira o cobertor, deixa o crente entregue a
outros mecanismos. Mesmo assim poderia estar enganado. Só que a fé
não funciona comigo.
Tiro
Deus dessa história. A culpa é inteiramente minha. Comi o prato
frio da vingança quando a namorada dela foi embora e a deixou na
miséria, apaixonada, doente e sem emprego. Mas a gente termina não
comemorando a vingança. É o prazer mais rápido que existe no
mundo. Depois vem a culpa e a sensação de falta de sentido. Foram
os pensamentos que passaram por minha cabeça quando empurrava a
cadeira de rodas, na porta da Santa Casa de Misericórdia (por que
colocam esses nomes em hospitais? Parece nome de cemitério. Gosto
mais da linguagem tecnocrática: centro de recuperação, pronto
socorro, atendimento à saúde etc etc).
No
anos 80 e 90 os medicamentos antidepressivos não eram tão bons como
os de agora. Psicotrópicos deixavam os pacientes babando e com a voz
engrolada. Ela sofria muito com a separação e adoeceu de outras
coisas. Sofreu com a namorada, mas não sofreu quando separou-se de
mim – esse era o problema; eu queria um pouco de sofrimento por
nossos anos de casados. Apesar de tudo, não culpo a namorada, que
agiu da forma como ela agiu comigo. Foi embora e ponto final.
Aí
veio a passagem do século e ela começou a melhorar a custa de novos
remédios e do tempo passado. Já andava, comia sem ajuda e conseguiu
remédios de última geração. A medicina evoluiu e seu coração
ficou menos apertado por causa da outra. Ficou agradecida pelos meus
préstimos, embora eu não achasse que merecesse tanto. Ainda nutria
restos de sentimentos negativos. Mas ajudei a repô-la no mundo em
condições razoáveis de sobrevivência. Considerava isso a melhor
parte – a parte do homem bom.
Então,
ela renasceu. Tinha jeito para a escrita e terminou um bom livro
sobre a doença, mas sem entrar em detalhes do nosso relacionamento.
Não éramos personagens da história, pois preferiu tratar a
depressão como um moto próprio - uma espécie de diário da cura.
Em
2013, considerei minha participação encerrada. Ela Também.
Escreveu uma carta amável, deixou em cima da mesa, e foi embora de
novo, desta vez sem ninguém. Fiquei aliviado por ter colaborado com
a recuperação – pelo menos depois da Santa Casa de Misericórdia.
Desde então, nunca mais nos vimos.
sexta-feira, 19 de abril de 2013
As mortes de Maria Helena
Toda
semana Maria Helena morria. Constantes paradas cardíacas provocadas
por uma doença estranha, muito estranha, ainda não resolvida pela
medicina, levavam a traziam a mulher ao mundo dos finados – ou pelo
menos à antessala do fim. Nessas mortes, tão pontuais, às
quartas-feiras, ela entrava num túnel iluminado, como nos filmes
espíritas, mas antes de embarcar no desconhecido ou no nada, voltava
a si e via-se cercada por médicos e enfermeiras. Nem a família
frequentava mais suas ressurreições rotineiras. A novidade, nos
últimos meses, era a presença de religiosos, de todas as crenças,
interessados em saber o que se passa do outro lado.
Na
beira da cama, homens paramentados torciam pela confirmação de seus
dogmas. Maria Helena, no entanto, estava acostumada àquele meio
caminho andado e já não dava tanta importância ao túnel nem à
visão da luz estourada, um negócio já batido pelas matérias de
TV. Havia ainda os céticos, a considerar a viagem como parte da
programação do cérebro para enfrentar a morte de forma menos
assombrosa. Chamam isso de Experiências de Quase Morte (EQMs). O
caso de Maria Helena era mais raro porque o cérebro também parava,
ela esfriava e ficava branca como uma louça branca. Qualquer um,
nessas condições, iria direto para o IML.
-
Só sei que paro antes de entrar na parte mais forte da luz e daí
começo a voltar – disse Maria Helena aos médicos e a seu
ecumênico público.
Já
estava até chateada em não trazer notícias do túnel. Queria
colaborar. Um dia resolveu ir mais adiante e além, na direção da
luz forte, por sinal muito parecida com a luz sobre sua cama de
hospital. Não arriscou demais. Voltou.
-
Tudo é muito claro – contou Maria Helena, obviamente referindo-se
à luminosidade e não a uma inesperada revelação divina ou
sobrenatural. Clérigos, pastores, rabinos, pais de santo e mulás
pareciam impacientes.
Ela
gostava do corredor, apesar dos incômodos do retorno. Era como uma
viagem de ácido, virou um vício, embora a possibilidade de um
apagão definitivo não estivesse em seus planos. Além disso, sentia
certo incômodo quando ressuscitava. Mesmo assim, mantinha a
esperança de encontrar algo nesse roteiro, pois caso ficasse morta
por mais tempo ou para sempre, seria tedioso passar a eternidade sob
aquela iluminação exagerada, andando, andando, andando. De fato,
estava dividida entre um caso médico e uma questão religiosa.
Um
dia, acontece a todos, Maria Helena foi e não voltou. Os
observadores religiosos saíram do hospital com as mesmas certezas da
fé, mas estavam contrariados com o tempo perdido e a falta de mais
empenho da morta.
segunda-feira, 15 de abril de 2013
O disco e a dispensa
Perdeu tudo que estava no computador. Quando o técnico avisou
que não seria possível recuperar os dados, ele foi aos prantos, encheu a cara e
chegou em casa de madrugada, tateando no corredor do prédio escuro. No disco
rígido formatado por engano, havia dezenas de histórias, memórias, fotos e um
romance sobre a vida post-mortem de um ateu. Para onde foram os personagens, as
paisagens, os roteiros? O velho alter ego também se foi, junto com mulheres
loucas, homens sem destino e ruas da infância. Havia ainda um ensaio, frases de
efeito, e-mails íntimos de Maria Helena e uma longa entrevista com o
antropólogo Darcy Ribeiro.
- Você deveria ter feito um back-up – disse o técnico, sem
demonstrar a mínima comoção pela tragédia do cliente. Como escritor inédito, ele
continuaria inédito não fosse a intervenção de um amiga, cujos conhecimento de
informática compensavam o mau humor. Pediu ajuda, veio apenas uma informação:
“dism.exe”. Prompt e ponto final.
Não deu certo nas primeiras tentativas. Não seria capaz de recuperar
os textos nem refazê-los, pois as ideias pertenciam ao momento em que foram
escritas. Surgiu até a tentação do suicídio, mas queria deixar alguma coisa
para posteridade. Iria tentar retomar a literatura, do ponto de partida,
conforme consta no lado direito da tela. O ponto de partida, no entanto, estava
vazio, como o próprio autor, ao certificar-se da impossibilidade de capturar
seu romance no disco ou no éter, em algum lugar do espaço, no cinturão das
palavras. Seu tema de recomeço seria a perda. Não apenas dos arquivos. A perda
total, definitiva, como a história da morte contidas em seu livro.
Escreveria uma nova trama sem final feliz. Tentou. Sua primeira
história foi sobre um homem que perdeu a memória, mas tinha certeza de nunca
ter tido memória. A história de um homem que teria que refazer a vida a partir
do nada, uma vez que suas lembranças tinha apenas um flash: o instante em que
perdeu tudo. Mais: o personagem chegava em casa tropego como ele chegou.
Haveria um apelo ao absurdo.
Escreveu à mão:
Depois de beber, o homem abriu a porta com imensa dificuldade. A
chave não entrava e ele queria dormir. Pensou em algum problema na fechadura e
não levou em conta a possibilidade de estar na casa errada. Resultado: forçou a
porta, como nos filmes, e caiu direto no sofá. Só acordou às quatro da tarde
com o barulho da campainha. Polícia.
O assunto era a festa da noite passada, segundo o investigador
Nelson. A vizinhança reclamou da gritaria e do som nas alturas. Explicou que
morava sozinho e nunca dera uma festa em casa. Pelo menos não se lembrava.
Estava seguro do mal entendido até perceber a bagunça na sala: copos do chão,
camisinhas em todos os quartos e restos de pizza na sala. Quando viu aquilo,
descobriu tudo: estava em outra casa e, pior, não tinha menor ideia de onde
morava. Diante da nova informação, foi levado à delegacia.
-O sr fez uma festa numa casa que não é sua? – perguntou o
delegado.
- Não fiz festa nenhuma. Quando cheguei a festa tinha acabado.
- E o que o senhor estava fazendo lá?
- Dormindo. Bebi até mais tarde, devo ter pegado um táxi e fui
parar lá. Não prestei muita atenção ao ambiente. Adormeci logo.
- E onde o senhor mora?
- Eu não sei
Primeiro, o delegado pensou em roubo, mas nada fora tirado da
casa. Os donos estavam viajando, conforme apurou o agente Nelson. Depois, o
delegado pensou em amnésia e sugeriu que fossem atrás do passado, seguindo
documentos e flashes da memória. Ele não tinha nem documentos nem flashes de
memória. A única sensação era ter nascido, de fato, diante da porta da casa
desconhecida, com uma chave errada na mão.
O trabalho da polícia foi exaustivo. A partir de seu nome –
Ariosvaldo Dantas – os policiais correram atrás de pistas, inclusive com
recursos de série de TV, e nada havia registrado em seu nome: conta bancária,
impressões digitais, empregadores, mensalidades, CPF, família, DNA, título de
eleitor e imposto de renda. Os outros 227 Arisvaldo Dantas encontrados eram
homônimos, conforme apurou, mais uma vez, o diligente Nelson.
- Seu Ariosvaldo – disse o delegado – não encontramos nenhuma
prova de sua existência como pessoa física.
Por razões ficcionais deveria inventar um passado a partir do
nada ou de uma situação bizarra. Não seria, portanto, um caso de amnésia
convencional. Conversou com o psiquiatra da polícia, um major gordinho e
corado, e cada vez mais corado com sua história. Não sabia onde nasceu, onde
viveu, onde trabalhava; não sabia quem era seus pais e se tinha filhos. O
médico receitou um antidepressivo e sugeriu que ele voltasse à casa. Voltou.
Espaços e móveis, exceto o sofá onde dormiu, eram estranhos para
ele. Rodou pelos quartos, nada. Entrou no banheiro, nenhuma lembrança. Quando
enfim abriu a portinha da dispensa, a memória acendeu. Tudo ali era conhecido.
Produtos de limpeza, pacotes e enlatados, o arranhão na segunda prateleira,
tudo lhe dizia respeito. Sabia de cor as instruções de cada mercadoria, como o
limpa piso, de ação antiderrapante, cuja inalação é perigosa, de acordo com as
precauções. “Procure um médico em caso de ingestão”. Passou a recitar a
composição e as instruções de uso de cada embalagem. Aquelas coisas eram parte
de sua infância, adolescência e idade adulta, senão o todo. Sentiu falta de
algumas marcas. Não havia mais o óleo de Peroba nem cera Parquetina, mas era
como estivessem lá, ou pelo menos estavam em sua cabeça.
- Só recordo dessas coisas – contou ao médico de sua ficção –
Não há gente em minha memória. Só vejo a dispensa. Também lembro de baratas,
achava que conviveu com algumas delas, mas morriam em nove meses. Influências
de Kafka, talvez, mas andou pesquisando sobre esse inseto asqueroso - Blattaria
ou Blattodea -, residente na Terra há 300 milhões de anos.
...
A história estava desandando, como dá para ver, e ele não sabia
como estabelecer uma lógica de um desmemoriado criado em uma dispensa e um
sujeito que formatou o disco rígido. Como aprendeu a falar, a ler rótulos, como
nasceu? Foi aí que recebeu nova mensagem da menina, mais completa:
disme.exe.image.cleanup. Entrou rapidamente no computador, sem muita esperança,
e de repente a tela iluminou-se com todos os documentos antigos, não sei
quantos gigas, sem uma vírgula a menos.
Passou da depressão á euforia. Estava de novo com seus textos e
poderia desistir do personagem sem memória. Mas durou pouco. Releu quase tudo
que havia escrito ao longo de anos e não gostou. Tempo perdido. Todas as
narrativas carregavam um conteúdo inverossímil, parecidos com a história da
invasão da casa e da vida na dispensa. Não valia muita coisa. Não valia a pena
seguir adiante. Então, ele voltou para sua dispensa imaginária e trancou a
porta por dentro.
quarta-feira, 10 de abril de 2013
Maria Alice
Espero tudo de Maria Alice, menos fidelidade. Não sei por que
aceitei o casamento em regime semiaberto, invenção dela, nunca tinha ouvido
falar disso. Já são quinze anos de vida extraconjugal da minha mulher, enquanto
aguento comentários desagradáveis e politicamente incorretos. Meu bairro ainda
é assim, atrasado, pessoas traídas são duplamente massacradas: pela traição em
si e pela fofoca. Maria Alice não diz nada. Só lembra que topei o semiaberto.
Lá vai ela, saiu de novo.
Antigamente eu ainda perguntava para onde ela estava indo, toda
produzida, e porque minha presença naquela noite era dispensável. “Não quero
chatear você”, ela respondia. Mais tarde, a notícia chegava: Maria Alice saiu
com sicrano, beltrano, ou mesmo beltrana, sicrana, não havia discriminação.
Quando voltava para casa, ela corria para o quarto, trancava a porta e ficava
lá, amuada, como se fosse a vítima da situação.
- Maria Alice! – eu batia na porta.
- Vá embora. Sei o que você está pensando
Eu voltava para a sala – o que se há de fazer? Entendia Maria
Alice. Ela sempre teve uma visão muito diferente do sexo. Havia o sexo
componente do amor e o sexo pelo sexo, como um exercício diário, necessário e
saudável, segundo ela. Mas ninguém percebe as coisas desse jeito. Virou a
vagabunda do bairro; eu virei corno. Sinceramente, acho uma simplificação dos
dois lados, mas não quero contrariar minha mulher nem entrar em confronto com a
vizinhança.
Maria Alice já teve diversas oportunidades de me explicar com
funciona sua cabeça em relação ao sexo. O regime semiaberto já é uma concessão,
pois se dependesse dela não haveria restrições. “Ao contrário dos animais,
estamos permanentemente no cio”, teorizava ela, em algumas horas de verdadeira
e imensa paixão. “A vida é curta para se transformar uma trepada avulsa num
Deus nos acuda”. Com o passar dos anos, a infidelidade de Maria Alice ganhou
sustança filosófica. “A sexualidade é essencial à existência humana, não só
pelo fato da procriação, mas antes de tudo pelo bem estar do individuo”, dizia
ela, citando Bertrand Russell.
Eu acho uma gracinha a fase intelectual de Maria Alice. Minha
situação é complicada pelos outros. Por ela, tudo bem. Nosso sexo é por amor.
Maria Alice pode dar suas saídas, contanto que volte. Minhas humilhações, nesse
eterno retorno, são substituídas por um raciocínio comum: a realidade é esta e
se continuo nela é porque quero. Eu quero.
Maria Alice e seu passado bem vivido. Sempre foi daquelas que
dividem apartamento, uma eterna roomate. Quando a conheci, tinha sido expulsa
de uma dessas moradias coletivas por traçar praticamente toda a comunidade,
criando desavenças, ciúmes e inimizades. Em sua ótica, talvez mais inocente à
época, era espantoso que as pessoas tratassem a questão dessa forma, com mau
humor. Aliás, tudo para Maria Alice depende de bom e mau humor dos outros. Seu
lema é “não gostou, foda-se”. Disse isso muitas vezes para mim. Sempre fugi do
ultimato.
De minha parte, sou fiel por não sentir falta de outra mulher,
cada um tem seu jeito; Maria Alice, por exemplo, tem o dela, gosta de variar.
Então eu passei a esperar, em casa, lendo alguma coisa, ouvindo sambas-canção,
enquanto ela estava na noite. No início, a ansiedade parecia insuportável. Com
o tempo, a coisa amainou-se, era como aguardar a chegada dela do trabalho,
embora parecesse o primeiro encontro. Uma vez ou outra eu parava e repetia a
anotação mental para o momento da chegada: “evite perguntas desnecessárias, não
demonstre contrariedades (nem entusiasmo, que assim também já é demais), pareça
mais moderno do que puro”. Hoje, procuro não incomodá-la com inquisições ou
lamentos.
Casamento é assim mesmo, a gente tem que fazer concessões.
Publicado no blog www.malvadezas.com
quarta-feira, 3 de abril de 2013
Boneca inflável – a última geração
Finalmente a encomenda chegou pelo correio.
Uma caixa simples e dentro dela uns aparelhos desconhecidos e o manual de
instrução. Ele demorou três dias para entender aquilo. Havia comprado uma boneca
inflável, pela Internet, e ao abrir o pacote não viu sinais de plástico ou
outro material usado na fabricação desse tipo de produto. Podia ser engano, mas
ele seguiu em frente.
Quando enfim ligou a sequência indicada no
manual, surgiu uma mulher de verdade, pelo menos na aparência. A moça
identificou-se (número de série, data de fabricação, validade, SAC, etc) e
depois passou a fazer perguntas ao comprador. Perguntas pertinentes,
inteiramente concatenadas, e ao obter uma resposta era capaz de comentá-la com
agudo senso de humor e completo conhecimento de causa.
Ele ficou assustado porque nenhum programa
de computador, até então, poderia proporcionar uma obra tão divina e perfeita,
talvez um gênio, igual Jeannie, ou coisa muito melhor. Um filme, por exemplo.
Já viu uns dois com roteiro parecido. O certo é que ela estava ali, em sua
frente, exibindo predicados nunca vistos em outra fêmea. Linda e culta, bondosa
e sarcástica, elegante e casual. Vestia apenas short e camiseta.
Refeito, ele começou a pensar no absurdo da
situação: a mulher artificial funcionava (ou se comportava, não se sabe) da
forma mais natural do mundo. O comprador, no entanto, ficou meio sem jeito, sem
saber como chegar ao real objetivo da compra: sexo ou algo semelhante.
- Quer tomar alguma coisa? – ele perguntou,
ainda intimidado.
- Um café. Pode deixar que eu faço –
respondeu, alegremente, a mulher comprada na Internet.
Houve um breve silêncio durante o
cafezinho. Daí ela tomou a palavra, enquanto ascendia um cigarro.
- Você é estranho – disse ela -, olhando
diretamente nos olhos do comprador. Quem compra mulher inflável está com
problemas. Mas isso não é da minha conta. Você quer se divertir e estou aqui.
Vamos ao cinema.
Foram, voltaram e ele passou a explicar à
moça detalhes do funcionamento da casa. Conversa neutra, sem ganchos para
polêmica. Ficou com medo de sugerir uma ida à cama, mas perguntava por que
tamanha preocupação, pois ela veio pelo correio para determinados fins,
conforme o contrato do site. Estava de fato acuado diante da mulher artificial,
embora não parecesse, embora ela fosse mais bonita do qualquer indivíduo da
raça humana. Estava cabreiro com a suavidade dela movendo-se dentro da casa, a
segurança ao tomar posições, dar sugestões; clara sem ser ofensiva.
Eis o consumidor satisfeito e cheio de
dúvidas. Aquele papo furado (comprei, é minha) não tinha chances de colar
diante da bela intrigante. Optou por aprender com ela, exibir humildade,
estudar frases de efeito, entendê-la um pouco e exercitar a arte da conquista.
A ex-boneca inflável merecia.
Com o tempo, o relacionamento seguiu dentro
de uma inesperada normalidade, mesmo sem sexo. Na lista do comprador também
estava “não devo demonstrar ansiedade”. Coube à mulher quebrar o gelo. Explicou
que não tinha dramas morais em relação ao sexo e, caso fosse o caso, poderiam
experimentar. Rolou. Horny and wet, ele pensou, ao ligar as primeiras sensações
da trepada aos seus conhecimentos eróticos obtidos em sites pornográficos.
Ocorreu então a explosão, orgasmo com reflexos na escala Richter e nas linhas
de transmissão de eletricidade. Líquidos jorraram no quarto, inundando a casa,
e o cheiro de suor e sexo tomou conta do quarteirão. Cada célula do corpo
parecia sentir o gozo definitivo.
Amor nasceu ali, entre os lençóis, enquanto
ambos já estavam exaustos e satisfeitos. Ele resolveu arriscar. Primeiro: “de onde
você veio? Segundo:
por que não se casa comigo? Ela apenas repetiu suas especificações
técnicas, acrescentando uma advertência ao consumidor: “ainda estou na fase de
testes”.
terça-feira, 2 de abril de 2013
Iberê, segundo Paulo*
Nesse
ponto da minha história com Iberê eu queria fazer uma pausa para contar como
conheci Assis, o fotógrafo, num restaurante a quilo da Rua Augusta. Sujeito
inteligente e frustrado, parecido comigo. Conversa vai, conversa vem e ele me
convidou para conhecer seu trabalho numa revista de pornografia, com sede numa
casinha do Paraíso. Fui lá e fiquei impressionado. Sentado num banquinho do
estúdio, já no dia seguinte, pude observar como funciona esse mundo das
publicações de putaria.
“Empina a bunda mais um pouco”,
instruía Assis à modelo. Ela pensava já estar empinada o suficiente, mas o
fotógrafo queria destacar as reentrâncias de forma mais escancarada ainda,
seguindo os padrões de qualidade da revista. Buscava um ângulo novo, embora
novidades nessa área não sejam tão valorizadas. Queria compensar a falta de
atributos da mulher com uma pose menos usual, sem perder de vista os
necessários teores de sacanagem. Mas não havia jeito. A decepção de ambos era
visível. Poderia dar um intervalo, comer a modelo e reiniciar o trabalho, como
ocorre com frequência na publicação pornográfica. Não. Assis foi tomar um café
comigo na esquina e maldizer a vida. Ela foi chorar no banheiro.
Soube que Assis e a modelo,
Letícia, tinham outros planos de vida. Ela sonhava com as passarelas
internacionais quando era mais jovem; ele sonhava com as savanas africanas, os
povos do terceiro mundo, uma vida de Sebastião Salgado. Mas estavam ali, no
estúdio improvisado, produzindo closes de xerecas para o lupen do punhetariado.
O caso dela foi coração partido.
Casou-se, teve um filho, foi abandonada e ficou com cicatriz de cesariana. O
dele foi álcool. Como a profissão não decolava e as fotos não renderam o devido
reconhecimento, caiu na cerveja até onde o dinheiro dava. Depois, quase na miséria,
restavam Dreher e 51, as mesmas bebidas que eu tomava antes de ser resgatado
por Iberê. Quando parou, já era tarde. Só apareceu emprego na revista de
mulheres nuas, quase pelo avesso, e ele topou. O paudurismo só durou uma
semana. Logo, logo o trabalho ficou chato, repetitivo, uma sequência
interminável de bundas, linguinhas pra fora, sorrisos falsos, pernas abertas e
o velho fundo azul do estúdio. Vidinha de merda – e Assis ainda tinha que
ajudar na paginação. Mal conversava com as meninas, muito menos saía com elas
depois do expediente. Não era moralismo. Achava tudo sem muita imaginação.
Poderia até inovar, aqui e ali, mas os leitores, digamos assim, nem iriam
notar. O cara que compra a revista quer ver xoxota in natura, sem frescuras
estéticas; esqueça o Cartier-Bresson . Então eu sugeri a Assis: “posso te
arrumar uma colocação na igreja de um amigo. Produzo uma publicação, house
organ, sobre os cultos, as obras sociais, enquanto você faz um trabalho por
fora, mais artístico, para seu uso, mostrando a presepada das sessões de cura”.
Assis ficou curioso, já pensando num livro de arte, com capa dura, e resolveu
ir comigo conversar com Iberê.
*Trecho do livro “Iberê, segundo
Paulo”, a ser lançado em maio pela editora Nhambiquara
Do malvadezas.com
segunda-feira, 1 de abril de 2013
O amigo de Maria Amélia
Perdendo o sono por causa de ódio,
embolando aquilo no juízo, quase esmurrando as paredes só de imaginá-la nos
braços dele, os de sempre - os braços do melhor amigo. Mais grave: braços,
pernas e outros membros envolvidos, entrelaçados em minha própria cama. Estavam
lá, juntinhos, aos beijos, eu vi. A pior tarde da minha vida nessa convivência
angustiada de três anos com Maria Amélia e seu inseparável Aloísio. O tempo
todo fingi achar natural, deixava pra lá certos amassos, coisa de amigos, mas
da boca pra dentro eu me dizia para não confiar naquele safado.
Eram de fato velhos amigos e esse era o
problema. Sempre ele tinha umas coisas mais antigas para contrapor às minhas
recordações sobre ela. Quando eu falava da semana passada, o desgraçado vinha
com os tempos da escola. Sempre um passo na minha frente; neste caso sempre um
passo atrás, mas dava na mesma, pois ele demonstrava uma intimidade só
conferida pelo tempo. Às vezes brincava comigo: “antiguidade é posto, meu
filho”, pronunciava de forma maneirosa, tentando deixar implícito que era
brincadeira, todo gracinha, querendo talvez conquistar a simpatia do namorado
da melhor amiga, mas tratando nosso namoro como coisa muito secundária na
comparação com a amizade deles.
Maria Amélia também apresentava uns
comportamentos incômodos, especialmente quando ela se dirigia a nós dois, eu e
Aloísio, com se fossemos uma espécie de comitiva dela, um lote único. Nas
nossas conversas, ela usava demais a expressão “então, guys?”, quando queria uma decisão, de
preferência por unanimidade. Ela gostava da nossa companhia, pelo jeito, e
íamos a quase todos os lugares juntos. No cinema, ela se sentava entre nós
dois. Conversava mais com ele do que comigo. A mim, só restava um “psiu”,
pedindo silêncio, “presta atenção no filme”.
Nesse triângulo, eu ficava torcendo pro o
cara ser gay, muitas vezes é, mas este não era o lance de Aloísio porque ele
estava sempre ali, à espreita, preparando o bote, e dando botes de verdade na
minha ausência. A cena foi desagradável, aliás, terrível. Não era um beijo de
amigos e eu esperei o negócio evoluir e foi mesmo adiante, pois enquanto eu estava
tomado pela perplexidade, quase cego para a imagem, os dois já não tinham roupas
por perto.
O que fiz? Nada. Normalmente não se faz
nada nessas horas e assim é o mais certo, embora a tristeza de voltar para casa
remoendo aquela situação seja parecida com vontade de vomitar que nunca se
transforma em vômito, um negócio sem alívio. Ai o sistema nervoso começa a
trabalhar contra você, aumentando o tamanho do problema, salpicando aqui e ali
uns padrões morais, dando sinais de meu fracasso. Uma dor desgraçada e é por
isso que não dormi naquele dia. Eles não sabiam que vi, ou sabiam, sei lá.
O dia chegou. Decidi ter uma conversa com os
dois. Depois decidi sumir. Mais adiante decidi fazer de conta que nada havia
acontecido. Daí não decidi nada. Fiquei apenas pensando porque estava
destroçado, num mundo de relações amorosas tão voláteis. Por que agitar-se por
uma traição se todos, ou quase todos e todas, traem? Sexo não seria apenas mais
uma demonstração de carinho entre amigos? Acho que ela gosta de nós dois. É um direito
dela, pensando bem. Pensando mal: são dois escrotos.
Aloísio, no entanto, nunca deu menor bola
para esta disputa, caso haja ou houvesse mesmo uma disputa, já não sabia, e
diante de dúvidas e sofrimentos, liguei para Maria Amélia e disse que iria
viajar por uns dias, mentira, permaneci em casa, sozinho, bebendo milhares de
cerveja e chorando de vez em quando. Até que a saudade de Maria Amélia bateu
muito forte - se fosse doença era caso de correr pra emergência -, e então
resolvi informar que estava de volta de minha viagem que não ocorreu.
Não toquei no assunto, engoli a traição e Aloísio
não aparecia mais. Pensei que ausência dele fosse sentimento de culpa de Maria
Amélia. Até que ela contou, meio chorosa, que o amigo tinha viajado de verdade
e só voltaria dentro de dois anos. Foi um alívio.
Passamos a levar nossa vida sem ele, o
tempo correu, caímos na rotina de casal, já brigávamos um pouco sobre besteiras
e comecei a sentir que faltava alguma coisa.
Faltava Aloísio, o terceiro elemento, o pomo da discórdia, o pivô do
conflito, o responsável por manter minha vida com Maria Amélia em permanente
ebulição, como devem ser os amores. Enfim, sem Aloísio, a história acabou.
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