segunda-feira, 16 de julho de 2012

A mulher do novo rico



Por mais errada, pare com isso. Pare de se desculpar dessa forma. É humilhante. Toda vez é a mesma coisa: “não está mais aqui quem falou” ou “como sou estúpida!”. No final, você sempre recua, toda vez, se apequena diante dos outros, aceita o contrário do que pensa, só para evitar confusão. Vamos ao conflito, querida. Você é a primeira-dama, manda na casa, cuida dos filhos, não tem por que ficar se escondendo pelos cantos, por vergonha. Temos tudo, mulher, casa, carro e dinheiro, e você agindo como nos tempos da roça.

Recebemos pessoas, amigos de antes e de agora, e só com os de antes você troca umas palavras. Como tudo em cima, até este corpinho, e você se dirige aos outros com cara de mendiga. A pior coisa é olhar para baixo e você não levanta a cabeça, num sinal de obediência a não sei quem. Não pensei que seria assim. Você não mudou, eu mudei. Veio o dinheiro e eu mudei, tento não aparentar a condição de novo rico e, muito menos, a de eterno pobre, seu caso. Reciclei-me, querida, enquanto você não se moveu, ainda vive na roça, pelo menos na imaginação e no jeito, eu ando por ai, desenvolto, dando entrevistas, fazendo a social.

O dinheiro trouxe conforto, mas precisamos exercer a riqueza com mais classe, domínio da situação, olhar superior. Veja o caso do Ferreira. É um pobre coitado, funcionário público. A mulher dele, no entanto, seria uma rica de categoria. Faz yoga e análise, lê jornais e viaja à Europa. Você quer ficar em casa, como um animal em cativeiro, tem medo do mundo, nunca saiu do Brasil porque não quis. Por que não foi comigo e as crianças a Paris? Não sabe falar francês, também não sei, não importa. Tínhamos guia turístico, em todos os passos, traduzindo tudo, pedindo os pratos nos restaurantes e acertando a conta do hotel.

Agora, veja minha situação: não posso apresentar você às pessoas importantes que tenho conhecido. Mulher não é só para ficar em casa, tem que ajudar marido na network, conhecer os talheres, a política e as artes, apresentar-se com bons vestidos e não com essa roupinha de suburbana que você usa. Nesse seu ritmo, você nunca chegará lá, e eu fico nessa posição incomoda de não pode mostrar a própria mulher a públicos mais exigentes

Por isso eu pensei, não sei o que você acha. Conheci uma moca, formada em Letras, conversadora, educada em bons colégios, bem vestida. Pensei em trazê-la para cá. Quando o momento exigir, ela se apresenta como esposa e você como nossa criada. Só por um tempo, depois você volta. Como na peça de George Bernard Shaw, Pigmalião, uma mulher do povo se transforma em mulher da alta sociedade. Ai tudo se resolve.



...




A nova esposa chegou, era um assombro de cultura e ironia, finíssima, e a mulher de verdade contentou-se com sua posição de doméstica. Meses se passaram, e a moca das Letras continuava lá, sem problemas. As duas conviviam bem, conversavam, e Amélia aprendeu tudo, incluindo os segredos do amor, levado à prática, entre as duas, com discrição e intensidade. O homem passou a dormir sozinho, em outro quarto, enquanto as duas ocupavam a suíte. Mas ele estava feliz, os negócios progrediam. Atrás de um grande homem há sempre uma mulher – ou duas.




Rádio



Exaurida por amores fracassados, o coração partido e a alma em frangalhos, está no ar a Sessão Rola Triste. Refugio dos desamparados e palco das paixões perdidas, Rola Triste leva aos sorumbáticos ouvintes os mais sofridos acordes do cancioneiro popular, a choradeira inevitável da separação, o fim da linha, a carta de despedida, o retrato em branco em preto. Aqui, na Histérica, onde ninguém me ama, ninguém me quer, tocaremos seu coração com o lado B da vida, a mágoa e o desespero dos amantes abandonados. (Abertura do programa “Sessão Rola Triste”, da www.histericaw.com. No ar em agosto)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Nelson Rodrigues



Há beijos ruins, outros mais ou menos e só o de ontem foi bom, disse Renata à Luzia, apenas isso, depois de longo silêncio entre as duas. Estavam num banco de praça, passando o tempo, olhando o movimento, e só conversavam de vez em quando. Pouco assunto, cidade pequena. Durou mais uns três minutos, uma eternidade, até Luzia perguntar sobre o beijo de ontem, onde, quando e com quem. A outra respondeu de pronto: beijei a sua mãe. 

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Antigas ocupações




Procuro coisas para fazer em troca de uns trocados. Tenho várias habilidades, nenhuma reconhecida, todas fora de moda, como as de relojoeiro e datilógrafo. Também gravo nomes em canetas Parker, amolo facas, conserto relógios e caixinhas de música. Já fui motorneiro de bonde e ascensorista. Só atividades em vias de extinção ou já extintas, porque não lia sobre as profissões do futuro, nas revistas especializadas, senão estaria em boa situação, exercendo ofícios do século 21. Poderia ser headhunter, especialista em Multi-Level Marketing, homem da Nanotecnologia ou consultor de mídias sociais. Não. Preferi o Liceu de Artes e Ofícios e o eletrotécnico da esquina. Com ele aprendi a pôr em funcionamento tevês quebradas, de todas as polegadas, mas isso foi no tempo das válvulas e hoje só restam as válvulas dos fornos microondas – as magnetron – e não sei abrir esses aparelhos.

Espero, então, pelo resultado do meu anúncio nos classificados do jornal impresso.  Não sei mexer na Internet, já tentei, nem saí do canto. Não consigo usar celulares e ainda tenho um telefone de disco. Preto. Enquanto os clientes não chegam, monto e desmonto o mesmo relógio, um Ômega do meu pai. Sempre no mesmo horário, à tarde. Perfeito, ele aponta três horas e são três horas, funciona bem, desde ontem, quando foi consertado, mas ontem também estava na hora a certa, como sempre esteve.

O relógio é de 1900, uma raridade. Foi o primeiro modelo de pulso da empresa, segundo o catálogo. Policromado, movimento Lépine, caixa em prata com dupla dobradiça, escudo floral branco, parte posterior trabalhada em guilloché e mostrador em esmalte. Abro para ver como é dentro, não resisto e tiro todas as peças, a mola salta, mas remonto novamente, com esmero, e só preciso perguntar as horas, acertar os ponteiros e dar corda. O tic-tac, então volta, preciso, depois de seis horas de trabalho. De minhas profissões inúteis ou fora de época, a de relojoeiro é a mais prezeirosa. Consertar relógios é um passatempo.


O ômega pronto, são nove da noite, passo amolar facas, as mesmas de ontem, ou escrever cartas, datilografadas, sem remetentes, apenas por diversão. Escrevo e guardo. Em seguida, também desfaço a máquina, uma Remington, cujo dono deixou aqui, há alguns anos, e nunca veio pegar de volta. Comprou um computador. Mas vejo uma grande vantagem na máquina – o barulho. Cada letra é um baque, uma pancada no papel, uma letra impressa em tinta que suja os dedos, um sinal de coisa viva.


Quando tenho tempo entro num elevador qualquer, no centro da cidade, e fico subindo e descendo. Eventualmente, pergunto a alguém “qual o andar?” e aperto o botão. Também me divirto com as conversas, e fico misturando os assuntos, os daquele grupo que saiu com o que entrou, e assim por diante. Só não gosto quando o elevador fala. Anuncia o andar, as portas se abrem sem minha ajuda, permaneço em silêncio e descubro outro tempo, fora do meu. Volto para casa, ao relógio, a corda salta...








quinta-feira, 5 de julho de 2012

Oficina






As situações humanas mais absurdas já foram ditas, escritas, reescritas, plagiadas, filmadas e refilmadas. Não sobrou um único assunto inédito, denso e forte para minha estreia na literatura e cá estou, com meu novo romance, baseado em fatos irreais, salpicados com influências várias, cheio de citações inteligentes e fina ironia também transplantada. Citações de outros autores, histórias de outros livros, coisas acontecidas com terceiros. Apenas juntei tudo com jeito, embaralhei personagens, adulterei cenas, transformei verdades em mentiras e vice-versa. Agora dou oficinas literárias. Sugiro cinco livros. Os participantes constroem um texto inspirado nessas leituras, sem esquecer a sutil identificação do escritor e personagens utilizados.

Coube à melhor aluna da minha oficina o encargo de iniciar o exercício de inverossimilhança proposital: transportar Madame Bovary para Os sertões de Euclides da Cunha. A menina escreveu bonitinho sobre a destacada senhora, e obviamente ela, dona Emma, detestou aquele arraial, achou “le comble de l'horreur”, mas de repente a história empacou. A madame refletiu um pouco sobre a aturdida turba de Conselheiro (a conjunção dessas palavras é deliberada) e depois se perdeu no vasto semi-árido baiano sem deixar vestígios. Outra aluna – só há mulheres na sala – encarregou-se de encontrar a deslocada Emma e repô-la em outro romance, mais confortável e francês. Aliviada, Mme. desembarcou em Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Fora resgatada por modernistas brasileiros e despachada via Porto de Santos. “Aquela alma incomum, apesar do gosto pela transgressão, não tinha escopo para as raízes do Brasil”, escreveu a terceira garota, socióloga, blogueira e gata.


Não sei por que, mas as alunas só importam personagens. Nenhum dos nossos viaja para romances russos ou franceses. Em um dos textos, assinado pela quarta e última aluna, Hans Castorp troca o sanatório suíço de A Montanha Mágica pelos ares de Campos do Jordão. O tratamento no Berghof não dera certo e o digressivo Hans jogava a última ficha na suíça brasileira, ao lado de Nelson Rodrigues e Manuel Bandeira - um trio unido pela tuberculose. A partir daí, a querida oficineira se perdeu. Soltou os personagens de Nelson pelos corredores, canalhas e contínuos, e encheu o ambiente de “febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos” (Bandeira, Pneumotórax). Hans Castorp não deu bola – continuou tossindo e pensando na República de Weimar.



Por essas e outras o trabalho ma oficina tem sido mais divertido do que escrever livros. Nada é levado a sério e o sucesso das aulas talvez venha daí. As garotas da Somaterapia são bem-vindas, chegam na semana que vem, e a nós também se juntarão duas senhoras da sociedade.

Hoje tem espetáculo. Há uma forte influência do teatro nos textos das meninas. Chamam diálogos de falas e se alegram com o mix de personagens dos livros indicados sem se preocupar com a lógica. O final é quase sempre carnavalesco e erótico e olha que nenhuma estudou com o Zé Celso. Não desaprovo quando aparecem as criações coletivas bem doidinhas, supostamente baseadas em minhas instruções. Numa delas, Romeu e Julieta se casam, fogem para o Brasil e vão morar no romance de Machado, na mesma rua de Bentinho e Capitu. Viram amigos e aderem ao suingue.