quinta-feira, 5 de julho de 2012

Oficina






As situações humanas mais absurdas já foram ditas, escritas, reescritas, plagiadas, filmadas e refilmadas. Não sobrou um único assunto inédito, denso e forte para minha estreia na literatura e cá estou, com meu novo romance, baseado em fatos irreais, salpicados com influências várias, cheio de citações inteligentes e fina ironia também transplantada. Citações de outros autores, histórias de outros livros, coisas acontecidas com terceiros. Apenas juntei tudo com jeito, embaralhei personagens, adulterei cenas, transformei verdades em mentiras e vice-versa. Agora dou oficinas literárias. Sugiro cinco livros. Os participantes constroem um texto inspirado nessas leituras, sem esquecer a sutil identificação do escritor e personagens utilizados.

Coube à melhor aluna da minha oficina o encargo de iniciar o exercício de inverossimilhança proposital: transportar Madame Bovary para Os sertões de Euclides da Cunha. A menina escreveu bonitinho sobre a destacada senhora, e obviamente ela, dona Emma, detestou aquele arraial, achou “le comble de l'horreur”, mas de repente a história empacou. A madame refletiu um pouco sobre a aturdida turba de Conselheiro (a conjunção dessas palavras é deliberada) e depois se perdeu no vasto semi-árido baiano sem deixar vestígios. Outra aluna – só há mulheres na sala – encarregou-se de encontrar a deslocada Emma e repô-la em outro romance, mais confortável e francês. Aliviada, Mme. desembarcou em Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Fora resgatada por modernistas brasileiros e despachada via Porto de Santos. “Aquela alma incomum, apesar do gosto pela transgressão, não tinha escopo para as raízes do Brasil”, escreveu a terceira garota, socióloga, blogueira e gata.


Não sei por que, mas as alunas só importam personagens. Nenhum dos nossos viaja para romances russos ou franceses. Em um dos textos, assinado pela quarta e última aluna, Hans Castorp troca o sanatório suíço de A Montanha Mágica pelos ares de Campos do Jordão. O tratamento no Berghof não dera certo e o digressivo Hans jogava a última ficha na suíça brasileira, ao lado de Nelson Rodrigues e Manuel Bandeira - um trio unido pela tuberculose. A partir daí, a querida oficineira se perdeu. Soltou os personagens de Nelson pelos corredores, canalhas e contínuos, e encheu o ambiente de “febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos” (Bandeira, Pneumotórax). Hans Castorp não deu bola – continuou tossindo e pensando na República de Weimar.



Por essas e outras o trabalho ma oficina tem sido mais divertido do que escrever livros. Nada é levado a sério e o sucesso das aulas talvez venha daí. As garotas da Somaterapia são bem-vindas, chegam na semana que vem, e a nós também se juntarão duas senhoras da sociedade.

Hoje tem espetáculo. Há uma forte influência do teatro nos textos das meninas. Chamam diálogos de falas e se alegram com o mix de personagens dos livros indicados sem se preocupar com a lógica. O final é quase sempre carnavalesco e erótico e olha que nenhuma estudou com o Zé Celso. Não desaprovo quando aparecem as criações coletivas bem doidinhas, supostamente baseadas em minhas instruções. Numa delas, Romeu e Julieta se casam, fogem para o Brasil e vão morar no romance de Machado, na mesma rua de Bentinho e Capitu. Viram amigos e aderem ao suingue.

  

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