Qual a primeira providencia a tomar numa hora dessas se não tenho jeito para tais coisas, mesmo porque desconheço os detalhes, os motivos e os nomes dos envolvidos, apenas me delegaram isso, num estranho processo em que fui designado juiz do mesmo jeito que poderia estar na posição de réu, como no livro de Kafka? A pergunta está zunindo na minha cabeça, desde ontem, quando chegou a correspondência, com carimbos e selos oficiais, protocolo para assinar e um aviso de “urgente”. Coube-me então tomar decisões, com base em depoimentos ainda não enviados, sequer colhidos, talvez, mas já tratados como assunto passado, embora ainda não saiba por que me escolheram, pois não sei absolutamente nada do que está se passando e não tenho formação jurídica. Nem testemunha poderia ser porque nos últimos anos não presenciei nada suficiente para um processo, exceto algumas infrações de trânsito, comuns em nossa cidade, mas havia outras pessoas mais bem posicionadas na hora desses eventos, e não tinha policiais por perto, e as desobediências ao Código Nacional de Trânsito não resultaram em vítimas, e o máximo que os prejudicados fizeram foi chamar os motoristas de “filha da puta”, uma reação plenamente aceitável nos dias de hoje, diria até normal, em se tratando de um povinho mal educado como o nosso. Teve ainda uma briga, que nem me lembro dos detalhes, só que não resultou em feridos e a confusão foi de pronto resolvida em primeira instância, a cargo da Turma do Deixa Disso, e tudo terminou bem e, se não me engano, cheguei a ver os dois contendores sentados no bar, trocando juras de amizade eterna.
Com certeza é algo mais grave, talvez um engano, embora a documentação traga meu nome, endereço e CPF e prazos para cumprir no decorrer do processo, numa linguagem intransponível para leigos, uma vez que a tipificação do crime não me pareceu clara e a forma como veio escrita, em linguagem altamente jurídica, não elucidava nenhuma das minhas dúvidas. Cada vez mais assustado, recorrei a manuais de Direito e neles não encontrei referência ao arrazoado que me foi entregue pelo oficial de Justiça, que por sinal não se identificou como tal, informando apenas ser um enviado do Egrégio Tribunal, com prerrogativas de acompanhar o desenvolvimento do meu trabalho em relação ao crime contra a ordem constituída, sem mais detalhes, nem mesmo artigos do Código Penal ou da Constituição Federal. Ainda perguntei ao emissário a quem recorrer para mais esclarecimentos e obtive uma resposta seca: “O senhor sabe o que fazer”, disse o intermediário, sem fornecer pistas ou nomes de seus superiores.
Como a conjuntura me pareceu próxima a de Josef K., em forma de subliteratura, resolvi voltar ao livro de Kafka, e percorrendo suas 332 páginas de puro absurdo, decidi apenas esperar uns dias, sem fazer nada, até nova visita do emissário, com outra papelada, cujo teor tinha certo tom de admoestação por minha indiferença em relação ao processo. Mais grave ainda era o pedido de detalhamento de itens nebulosos, desconhecidos por eles, do Egrégio Tribunal, e mais ainda por mim, mero personagem de uma alucinação jurídica. O emissário pediu apenas para escrever “ciente” e assinar. Resolvi então usar o pequeno espaço abaixo do texto para expor minha suspeita sobre a possibilidade daquilo não passar de um equívoco. “Não consigo entender absolutamente nada sobre o processo em questão e muito menos porque me escolheram para julgá-lo”, escrevi. “O senhor não deveria ter feito isso”, repreendeu-me o enviado, entregando-me outra cópia do documento, onde coloquei “ciente” e assinei, sem resistência, quase me sentindo culpado por atrasar o andamento do processo.
Não restou outra saída. Resolvi trabalhar duro em cima daquelas abstrações, reproduzindo outras abstrações, citando autores, literários e jurídicos, e salientando que o réu em questão, lembrado vagamente no processo, era inteiramente inocente do crime que não lhe era imputado. A Justiça, enfim, fora estava feita.
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