Depois
de um longo tempo na empresa, saí à procura de novos desafios que não
apareceram. Passaram-se seis meses e nada. O desemprego produz a sensação de
que tiraram a escada e estou me segurando com esforço no parapeito do prédio. A
cada decepção – “desculpe, não temos vagas” – parece que alguém pisa em minhas
mãos e às vezes penso em soltá-las. Passo o dia pensando nessas coisas porque
em casa a situação também não é boa. O casamento está no fim. O que passou,
passou, eu disse, e prometi ir embora. Só não sei como sair por aí sem
dinheiro.
Marilda
ainda trabalha. Eu perdi o emprego numa agência de publicidade porque agora os
produtos se anunciam sozinhos, por meio de algoritmos, e sem necessidade
daquelas sacadas e frases de efeito que não causam mais efeito no consumidor.
Inicialmente, ficamos acertados que ela manteria a casa naquele período difícil
e depois veríamos como compensar, em termos de grana, pois o casamento é uma
coisa, o dinheiro é outra.
Cada
dia mais acuado em casa, um intruso, tentando não aparecer muito na cozinha e
só como quando sou chamado. Li no jornal a entrevista de uma psicóloga em que
ela garante que a felicidade é possível a um desempregado com boletos a pagar.
Não é verdade, pelo menos no meu caso, pois Marilda deu um ultimato e disse que
eu tinha três meses para arranjar qualquer trabalho – nem que fosse
intermitente. Argumentei que o mundo tinha mudado, os empregos sumiram para
quase todos e que só sei fazer uma coisa; talvez nem saiba mais, Marilda. Hoje
uma margarina se anuncia por conta própria, levando em conta bilhões de
possibilidades e eu sou do tempo do slogan e do jingle.
Eu
precisava de uma ideia, um aplicativo que gerasse renda, um modelo de negócio
inédito, mas termina me distraindo jogando paciência no computador. Eu entendia
a preocupação de Marilda, pois o salário dela tinha sido cortado pela metade,
por uma nova medida do governo, e minha presença em casa estava estourando o
orçamento. Outro problema era o fim do amor. Não apenas o nosso. O próprio
sentido do amor tem se esvaziado em todo o planeta. As pessoas se casam para
dividir os custos domésticos e, secundariamente, por sexo, que não resiste às
oscilações do mercado e ao dia a dia. O importante é o equilíbrio das contas.
Meu
mundo keinesiano desabou nessa temporada de ócio. O Estado não pode fazer nada
por mim. Nem a iniciativa privada. Marilda já fez o que pôde.
Turismo
Finalmente,
encontrei uma saída. O Turismo por Acaso era o meu produto. Vendia viagens que
transcorriam ao sabor dos acontecimentos, sem hora para voltar, com todos os
dias livres. Cada um marcava seu hotel, de acordo com o gosto e a situação, e o
passageiro também poderia pegar a passagem quando quisesse ou desistir no
último momento. Eu mesmo sou o guia de todas as excursões. Sento-me num bar,
peço uma bebida e espero que algum cliente venha com dúvidas sobre a Catedral
de São Vito ou os canais de Bolonha. Se não vier, melhor.
Realeza
Deslocava-se
com facilidade nos bastidores da corte. Vez por outro se inclinava para Sua
Majestade até os limites dos ossos. O rei torcia secretamente para ele
inclinar-se ainda mais. Só no último instante fazia o gesto real que significa
“por hoje, basta”. O homem faz a sua parte e recebe a contraparte. Move-se nas
salas enormes, se solta em cortesias, chama burocratas de Vossa Excelência para
situar-se também nos escalões inferiores. No final do mês, recebe as moedas e
vai para taberna vangloriar-se de seu espírito público.
Memória
Escreveu
as memórias até a metade do livro e dali em diante foram parágrafos e
parágrafos sobre a perda da memória, crítica sem piedade à falta de sentido de
coisas ditas do primeiro ao sexto capítulo e historinhas “bem chinfrins”, como
Graciliano disse a Antônio Cândido. Depois da doença, só lhe vieram lembranças
cotidianas sem importância aparente, sem comendas ou convivência com vultos da
República. Não sabia mais quem eram aqueles homens com os quais dividiu
segredos de Estado, mas os fatos da infância tinham nitidez e brilho, como a
lagartixa imóvel na parede de seu quarto de criança e cenas do primeiro filme
que viu na vida: Gunga Din, de 1939. A primeira parte era uma peça auto
laudatória e, aqui e ali, mentirosa. A segunda parte era tudo que ele não teve
na política: estilo. A amnésia deu-lhe jeito para juntar as palavras de forma
direta e concisa.
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