segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Viagens


1 - O precipício é enorme. Ninguém sabe a profundidade. Alguns acham que não tem fundo. Há pessoas que pularam há anos e estão caindo até hoje, diz o guia de turismo, orgulhoso daquela maravilha. Surgiu ali do nada. De repente havia o buraco e logo as histórias sobre curiosos e suicidas que, em pleno mergulho, conseguiram conversar com a família, por seus celulares. Informaram que estava tudo bem, por enquanto. Uns se arrependeram; outros se divertiam.

2 - Dois homens na plataforma abandonada acenam para um trem que não vem mais. Ficam ou ficavam o dia inteiro na antiga estação sem trilhos à espera de ninguém. O município convivia naturalmente com o fato. Os dois tentam consertar a paisagem e encenam a chegada de amigos e parentes, carregam malas imaginárias e, enfim, à noite, tomam o último vagão para casa.  

3 - O voo vai atrasar duas horas, anuncia o serviço de som. Ouve-se um murmúrio de lamento, como se ouve na hora de um pênalti perdido. Alguns faltarão a reuniões de trabalho; outros não chegarão a tempo para a festa. Nesses momentos, o destino não é só a cidade para a qual o passageiro pretende se deslocar; o destino aparece em sua amplitude cósmica. Tudo contido, naturalmente, porque a vida tem que continuar, caso contrário os negócios fracassam.  Há uma tensão sutil, mas detectável em muitos passageiros: o medo da morte. Nos aeroportos esse pavor aflora, ou irrompe, quando se pensa na batalha a enfrentar lá em cima contra forças terríveis da natureza, entre elas a da gravidade.


4 - Ao completar sessenta anos, fez cálculos. Dentro de uma ou duas décadas estaria morto, considerando as extravagâncias da vida e ordem natural das coisas. Sentiu-se condenado à morte e só lhe restava a crença em outra existência, talvez menos efêmera, talvez eterna. Nenhuma certeza. Também podia ser nada, como dormir e não acordar mais nunca. Enfim, lances que passam pela cabeça de alguém quando pensa na morte; e todos pensam, algumas vezes. Só que ele pensava o tempo inteiro. Pensa até hoje, aos 94 anos, esquecido das previsões, mas certo da iminência do fim.

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