sexta-feira, 12 de agosto de 2011
O pequeno Pedro Nava
Desde cedo, dez anos de idade, começou a escrever sobre o um único assunto: sua família. Não era ficção, no início. Anotava tudo o que se passava em casa numa espécie de diário em papel pautado. Detalhes inocentes sobre a vida sexual dos pais e das irmãs, questões econômicas, cardápio de frango quase todo dia, problemas com o carro, doenças, relação com vizinhos, mentiras, pequenas traições, ódios e ataques de fúria. Mantinha uma disciplina quase profissional. Escrevia à tarde, depois da escola, cuidando de pesquisar assuntos mais recorrentes, como as menstruações e a temporada de cistos no ovário, por volta de setembro, sabe-se lá por que. As mulheres, como sempre, rendiam mais. O pai, gerente de supermercado, não despertava bons ou maus sentimentos. Era ausente e oco.
Aos 12, o menino havia acumulado cerca de mil páginas sobre o universo familiar, com o diário manuscrito passado para o Word. Pouco tempo depois, graças à Internet, pôde rever algumas de seus enganos de ordem técnica. A procriação, por exemplo. Sabia desde o começo que o sexo estava relacionado com o nascimento da prole, mas não esperava que fosse de forma tão direta. O ginecologista era apenas um observador do processo, conforme constatou em um site. Seres sobrenaturais, entre ales a cegonha, há muito haviam saltado da suspeita para a mitologia
Com 14 anos, já um pequeno Pedro Nava em tempo real, estava precocemente na idade da razão. Sentia-se seguro para entrar no mundo dos adjetivos e das comparações. Resolveu então criar imagens deploráveis para si e para os outros – “percorro os esgotos da família como tartaruga Ninja” – e seguiu adiante, dissecando a parentalha de forma cada vez mais impiedosa.
Com o tempo, a precisão da infância foi se esvaindo, se esvaindo e o diário virou um livro de ficção, com nomes trocados, porque a irmã mais velha entraria na prostituição, o pai se daria ao álcool, a mãe trairia abjetamente como o primeiro que aparecesse.
E foi assim que entrou na adolescência. Não era mais o memorialista meticuloso, o pequeno Pedro Nava, mas um Nelson Rodrigues reencarnado, escrevendo um livro-bolero à Vicente Celestino, turbinado com incestos, alcoolismo de sarjeta e pecados mortais. Certo moralismo católico caiu em suas páginas, mas a experiência narrativa, o senso de romance e o comando das aliterações terminaram por transformar aquela casa normal, com suas crises corriqueiras, num mafuá de episódios ignóbeis e em estado de permanente depravação.
Nada batia com a realidade. O que fora escrito antes servia apenas de cenário. Seus personagens viraram pó, lama, podridão; pais e irmãs enlouqueceram em praça pública, sob o olhar de censura da vizinhança. O retrato do cruel esfacelamento de uma típica família brasileira deu ao ex-pequeno Pedro Nava o prêmio Juriti de autor revelação.
Lula Falcão
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