segunda-feira, 2 de junho de 2014

Obituário – o homem dos começos



Era do pior tipo de escritor dos três enumerados por Schopenhauer em Parerga e Paralipomena, pois escrevia baseado em reminiscências ou a partir de livros alheios. Queria ser do tipo raro, movido apenas pelo pensamento puro, compondo cada parágrafo como uma sentença definitiva sobre o século e a vida. Não chegou nem perto. Ele escrevia por dinheiro umas reportagens existenciais, normalmente crivadas de descrição de paisagens  e personagens construídos com gente de carne e osso. Mantinha o projeto do livro imortal, mas enquanto isso ia levando a vida à base de impressões de viagens e coletâneas de pequenos contos.

Para a chamada literatura séria escreveu um romance com início delicioso, miolo sem graça e final inverossímil. Ficou conhecido como escritor de começos. No primeiro parágrafo tudo parecia se encaminhar para a apoteose, mas a apoteose estava somente ali mesmo e o resto era diluição, dispersão e tédio.

Não ser um escritor jovem também o entristecia. Não podia recomeçar. Sintomas clássicos que via nos velhos de sua infância sentia em si, aos 69 anos,  e pensava na diferença entre uma ocasião e outra, mergulhando num estágio em que até  a depressão já partira, deixando em seu lugar um monstro muito pior. Ficava ruminando problemas o tempo inteiro, negócios dele e dos outros, textos que não saíam do canto, e demonstrava impaciência contra a velocidade de tudo, contra Deus, contra os costumes, contra o pessoal do telemarketing. Tais aperreios também servia à dispersão.

Queria pelo menos ser reconhecido como língua ferina; ferina e densa, cheia de conteúdo, capaz de provocar certo medo na plateia, além de vasta curiosidade nas mulheres. Assim achava, e queria outro tipo fazer um tipo, fora esse de escritor de médio alcance, porque lidava com a imensa dificuldade de escolher palavras certas, as que batessem com situações e conceitos pensados. Sem isso não funcionava.

Tinha ainda o vício de estabelecer relações entre histórias, quando não havia relação nenhuma, a não ser  para ele, tomado pela mais interna das piadas, a que só serve ao autor. O exercício de escrever, no entanto, era  seu ganha pão, principalmente depois da criação das revistas de turismo literário, um negócio entre a subliteratura e o jornalismo, que apareceu por volta de 2016. Ele estava autorizado a enxertar personagens fictícios no texto, mas os de verdade saíam melhores. Escreveu um romance razoável, mas faz tempo.

Suas teorias sobre a literatura talvez fossem mais interessantes do que o texto literário. Não o que escreveu, mas o jeito de falar  das palavras, como forma e conteúdo, imaginando leitores que pudessem ver em determinada palavra um significado bem além do significado que foi pensada pelo autor. Era sua conversa quase única, mas boa de ouvir, por causa de certa melodia. Por isso, seus ouvintes se enrolavam nas explicações, de tão entretidos com o som e molejo da história. Não conseguiu passar isso para a escrita.

Também parecia conhecer tudo em profundidade e enganava bem nessa área. O segredo era construir na mente um parágrafo elegante sobre determinado tema - um  bom lead, como diriam os jornalistas – e quase certamente seus ouvintes iriam imaginar que, dali em diante, viria um discurso longo e filosófico. Que nada. Ele soltava uma frase a respeito de uma conversa e logo lançava outra para barrar a primeira. Só parava esse joguinho na hora da literatura que, de fato, dominava. Não era um especialista em todas as coisas; era um generalista de especialidades.


Então começou a escrever e sentiu uma dor forte no peito. Parou. Mas veio a segunda, a terceira e uma quarta mais forte e ele tombou diante de uma história ainda no início, passada em um pequeno hotel do Chile durante o terremoto. Excelente parágrafo inicial, como sempre. O resto não valia a pena.

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