sexta-feira, 7 de abril de 2017

Em movimento 6 (fim)


Sem lei, a nossa sociedade funciona precariamente, mas funciona. Não há crimes como antes porque a sobrevivência tornou-se um ato solitário e às vezes de famílias; não dependemos de patrões ou empregados. Mas chegou-se ao ponto em que era preciso criar normas de convivência, talvez escritas, numa terra sem governo conhecido pelos cidadãos – se é que podemos nos chamar assim.

Em qualquer sociedade - mesmo a nossa, em colapso -, sempre surge alguém querendo organizar, criar direitos e deveres, especialmente aqueles que viveram o período anterior, quando a cidade tinha prefeito e câmara de vereadores. Faz tempo. Agora é cada um por si, entre os escombros, procurando comida, embora não haja animosidades, pelo contrário. Não existem mais estatísticas, mas não temos conhecimento de assassinatos e são poucos os roubos. Não há muito que roubar.

A lei, no entanto, está chegando a partir de um corolário muito parecido com uma versão laica dos dez mandamentos. Ficaram “Não roubarás” e “não matarás”, mas questões relacionadas com a mulher – ou homem – do próximo (a), que não importam tanto nessas ruínas, foram deixadas de lado. Resolvam-se. Também não amaremos a Deus sobre todas as coisas por termos outras prioridades. O pequeno conjunto de regras teve, por fim, toques do código penal do século passado, quando este imenso terreno baldio era um tribunal.

A carta, como tentam chamar, tem poucas palavras. Não adianta enchê-la de artigos, pois a criminalidade está ligada à posse de coisas que se podem vender e comprar. No nosso caso, além da Praça de Trocas, o escambo, não temos nada perto daquilo que a história registra como “mercado financeiro”. Existem moedas, por ai, desprezadas. Perderam a referência em relação a outras moedas e são usadas para jogar damas.

Por enquanto é só isso – uma lei de coerção moral. Não temos nem queremos o poder de polícia. Ninguém pensa em reconstruir a cidade. Não temos meios nem teremos.  Acho que também falta vontade. O passado nos deu ruins e bons exemplos, mas resolvemos não seguir nenhum deles.  De concreto, herdamos apenas o entulho e objetos sem as funções para a quais foram fabricados. Uso um fogão de quatro bocas como armário. Não sabemos ao certo em que ano passou o último caminhão de gás. 

Levamos a vida assim mesmo, sem quase nada.

Perdemos a civilização moderna, com seus expedientes e equipamentos e caíamos num cenário mais sombrio das coisas desgastadas pelo tempo. Não repomos peças, que já não temos, e não há qualquer organismo encarregado da manutenção das ruas e dos condomínios. Não restaram instituições: escolas e repartições, por exemplo, são só referências em livros que achamos no lixo. Em compensação, nos livramos do compromisso da produtividade e da ascensão social.


Para nossos sábios, que não souberam evitar o desastre nem revertê-lo, aconteceu o inevitável, conforme as leis da natureza. Saímos do estado ordenado para o estado desordenado. É assim que funciona, dizem eles. 

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