terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Literatura e materiais de construção

Não sonhava em terminar sem nada, embora nada tivesse. Jovem trata a pobreza de outra forma, encontra diversão e arte em qualquer canto: entradas francas, bocas livres, almoços grátis, cigarros filados, mulheres e punhetas. Mas na meia idade começou a reclamar da sorte. Logo ele, tão inteligente, colegial completo, dado à escrita, estava num emprego vagabundo, há 30 anos, vendendo material de construção na loja de um amigo.

À noite escrevia um longo romance de aventuras, mas o personagem central, o herói, era sempre sacrificado pelas condições do narrador. A aventura era simplesmente sobreviver como vendedor de material de construção. Aos poucos, o livro estava cheio de blocos cerâmicos, argamassa, cantoneiras, rejuntes, cal hidratada, tijolos vazados, pias, azulejos e louças sanitárias. O personagem se movia entre coberturas de Eternit (tropicais e ondulados), enquanto sua amada cumpria expediente, no mesmo estabelecimento, na seção de iluminação, catalogando modelos de interruptores com múltiplas funções, lâmpadas halógenas (de preferência dimerizadas), abajures, lustres e arandelas.

Conseguia encadear suas idéias, mas elas pertenciam exclusivamente ao mundo da construção, acabamento e decoração de interiores. Um salto em outra direção tornou-se necessário quando ele descobriu que sua vocação era mesmo a literatura. A primeira providência: viver uma vida fora da loja. Pedir demissão. Correr o mundo. Tinha 43 anos. Saiu da loja para ser aventureiro ao estilo Rimbaud, que ele conhecia de nome, não de leitura. Trocou a carteira assinada por uma passagem de ida para a África.

Naquele pequeno país conheceu de tudo, a começar pela guerra, a fome e a insegurança. Lutou ao lado dos rebeldes, que logo tomaram o governo e viraram tão facínoras quanto seus antecessores. Daí mudou para outro país, tão precário e pobre quanto o primeiro, mas em reconstrução. Não escreveu uma linha sobre a fase africana, pois tinha ocupações demais, negócios com armas, coisa perigosa, e dois filhos para criar no meio da terra arrasada.

Aos 50 anos, chegou a hora de pensar numa vida mais segura naquele pedaço do mundo que precisava de tudo, especialmente de material de construção. Montou uma lojinha, ele e a mulher, e o casal voltou à rotina: anéis de vedação, areia, caixas d’água, sifões, suportes, massa corrida, forro PVC, telhas, bandejas para pintura plástica, cimento, ripas, sarrafos, vigas, caibros, tubos e conexões.

O livro sairia um ano depois. Nada sobre a fúria da guerrilha, nenhum parágrafo sobre a miséria, campos de refugiados ou corpos ao relento. Sua literatura estava assentada em cal e cimento, revestida com mármore e granito. Fino acabamento, concisão e leveza de materiais, sem exagero nas tintas. Uma bela obra.

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