Por volta dos cinquenta anos surgiram os
primeiros sinais de adolescência tardia. Síndrome ainda pouco estudada, mas
com respeitável número de casos, é
provocada pela urgência de viver o que falta de maneira extravagante e juvenil –
e faltava pouco. O professor é o nosso velho paciente; já esteve em outras
histórias, parecidas com esta. Experimentou as vantagens de um mundo jovem num
corpo jovem e décadas depois viu-se diante de uma recidiva em plena era dos
cabelos brancos e das dores nas costas.
Foi a festas e teve casos com moças mais
novas, alunas de preferência, sempre com o coração aos pulos, a iminência do
infarto, a pressão lá em cima e mesmo assim, com falta de ar e suores, encarou
noites e mais noites em ambientes potencialmente perigosos para uma saúde de
homem maduro. Pare com essa vida, disseram os amigos, viaje, regre-se,
aproveite os pequenos detalhes, aprecie a natureza. Ele só parou depois do hospital,
internação e duas pontes de safena - a pequena adolescência foi interrompida
bruscamente.
Então o professor encontra-se agora no
convés do navio, em cruzeiro, sentado numa espreguiçadeira, com as pernas sob o
cobertor, olhando o mar calmo, entediado com a paisagem azul. Sente Gustave
Aschenbach febril e tossindo a seu lado nessa viagem mediterrânea, enquanto
pensa nas limitações do corpo porque a alma ainda quer festa e êxatase. O
personagem de Morte em Veneza deixa
cair um filete de sangue pelo canto da boca, confirmando a morbidez dos
cruzeiros marítimos, pois a bordo também estavam cadávares de passageiros de última
viagem, todos congelados, de volta ao ponto embarque. Morreram de velhice ou
vítimas da Escherichia coli, bactéria comum em navios de longo percurso. O
professor não se deprime nem se comove. Apenas lamenta o tempo perdido, apenas
impecienta-se com o comportamento previsível da tripulação e passageiros, apenas
sente falta do veranico juvenil.
Cruzeiros são também barulhentos e chatos.
Crianças gritam na pérgula da piscina, mulheres de meia idade exibem vestidos
caros para festas com desconhecidos e o capitão faz as honras do barco num
ritual ensaiado e repetido sem variações ao longo do trajeto. Não há clima e ele
sonha em abreviar a jornada, descendo no próximo porto, disposto a arriscar um
retorno à vida de antes, entre jovens, contrariando orientações médicas.
Foda-se, pensou ele. Morre-se do mesmo jeito, a despeito de dietas e cuidados.
O risco de morrer jovem já passou; chegou a hora do tudo ou nada.
O professor permanece no convés, ruminando
tais ideias diante do oceano e nenhuma graça passa-lhe a cabeça e passe-lhe somente
a vontade de recolher-se à pequena cabine com seu ventilador de teto baixo, bem perto da cabeça, um perigo a mais na
viagem, mas pelo menos um lugar sem a estridência dos salões e do convés. Mesmo assim
experimenta o sentimento perturbador de estar a milhas e milhas da costa com um
monte de gente estranha. A sensação é de
interrupção da vida, por duas semanas, sempre pensando em sua decisão de
abandonar o barco. Conta as horas, não consegue ler e, enfim, deprime-se de
verdade e o jeito é tomar os ansiolíticos, desses que nem deixam sonhar.
Porto de Santos, finalmente, o professor
desembarca e sobe a serra, atrás de ex-alunas e diversão de verdade. Em casa, a
pressa em restabelecer os laços, perguntas sobre as boas da noite, a várias
fontes, mas percebe uma indiferença no outro lado da linha e, quando sai
sozinho, na ronda pelos cantos mais óbvios, descobre que em quinze dias sua
cidade mudou, pois as jovens amigas sumiram; umas saíram de férias e outras
evitam sua companhia. A recaída torna-se um fracasso.
Viver a própria idade não é uma saída. A
síndrome exige movimento, noitadas radicais e sexo tenro. Sobram-lhe a rua
escura em que anda cabisbaixo e uma cerveja no balcão da padaria no momento em
que as pessoas chegam para o café da manhã. Falta um enredo para sua história a
partir deste instante de vazio em terra firme. Talvez faltasse a morte, o vazio
que não se sente, uma opção a ser levada em conta, ou o elixir da eterna
juventude, se existisse. Desiste, no entanto, de moer o sonho derrotado e o
impulso de suicídio. Não por amor à vida, no momento, mas por achar um desfecho
batido, pouco literário, e porque quase ninguém gosta de suicidas, mesmo
daqueles que deixam cartas criativas. Conformou-se.
Para a síndrome não há remédio conhecido nem
pesquisas a caminho nem paliativos. No
caso do professor, as crises só se agravam, especialmente na hora de
olhar no espelho a imagem especifica dos pelos que crescem nas orelhas,
sintomas de idade. O mal avança e, como um vírus, pode levar ao fim ou sumir de
repente, sem deixar sequelas. Para ele passou. Agora, o professor olha o
horizonte, no terraço de casa, sem muitas lembranças, quase nada para pensar.
Todas aquelas cenas de barriguinhas à mostra se desfazem, por desencanto, no
final da tarde.
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