terça-feira, 2 de junho de 2015

Um esboço de Adeildo


Contorno das nádegas perfeito, peitos naturais e o restante aceitável para o cargo desejado. Pode trazer os documentos amanhã, disse o futuro patrão, Adeildo, comendo a candidata com os olhos, quinta moça do dia a atender ao anúncio de emprego.  As outras não pegaram o espírito da coisa, segundo ele, pois vieram ajeitadinhas, com a melhor roupa, mas não era aquilo que se requeria. Quando escreveu boa aparência, estava querendo dizer gostosa, caso de Cleide, "o emprego é seu, minha filha", conforme falou Adeildo com cara de safado. Não bastava, portanto, caprichar nos cosméticos. Nessas horas, o corpo fala mais alto, supera a falta de experiência em Excel e as dificuldades com o idioma. Lá fora havia uma pequena fila, com outras candidatas, e eu avisei a todas que Adeildo era um idiota tarado e quem ficou, ficou porque quis.

Faz tempo. Adeildo foi vítima da desinformação. Há anos ouvia conversas a respeito de seu comportamento, mas nem aí, dizia que homem é assim mesmo.  O posto que no dia seguinte seria de Cleide já fora ocupado por mulheres de todos os tipos, sendo as minhonzinhas suas preferidas. Para completar, Adeildo era casado e tinha três filhos. Nas tardes de domingo, ele desfilava em seu conversível com duas ou três prostitutas, entornando Ron Montilla direto da boca da garrafa, apesar de estar ao volante. A loja era grande, dava para esses gastos.

À noite, em casa, mal falava com a mulher, Arlete. Nem ela queria ouvir nada. Não trepavam mais e da última vez nenhum dos dois se lembrava nem se interessavam em lembrar. Não eram estranhos numa mesma casa; eram inimigos numa pax armada de trinta anos. Ela, já envelhecida e fora do cardápio de Adeildo, sabia de tudo. O marido não sabia de nada. Desconhecia o ódio acumulado pela mulher, capaz de assassiná-lo ao final destas linhas. Vontade tinha, até disposição, mas não faria isso. Para ela, Adeildo merecia coisa pior do que a morte. Nisso, tinha o apoio dos filhos.
Adeildo era um personagem menor em termos de vida interior, desprezível em todos os sentidos. Trato Adeildo como um animal ou coisa, sem compaixão, colhendo apenas os absurdos de sua existência. Ele me tratava como escravo. O jeito antigo de descrevê-lo, com esses arrodeios sem estilo, encaixa nas características do personagem. Se ele soubesse escrever. Adeildo era analfabeto, mas naquela época muita gente ficava rica assim mesmo.  

Adeildo seguiu assim, sem leitura, e temperava seu comportamento de acordo com modos e modas da época. Nos anos 70 fazia o estilo ator de pornochanchadas, com seus óculos ray-ban e sorriso de bicheiro Depois, na década seguinte, tornou-se fã de discotecas. Seguia assim, feito uma besta, desde o dia em que o conheci e aceitei o emprego por necessidade.



O cabelo caiu, Adeildo voltou-se com todas as forças para o comercio, negócio criado e desenvolvido por ele, pois apesar de canalha era um empreendedor. Fez muitos amigos de seu dinheiro, alguns puxa-sacos e meia dúzia de desafetos. Em todos esses anos, amoldando-se da pior maneira a cada período, ele nunca deixou o pendor pelo assédio sexual, antes uma prática aceita no País e às vezes até aplaudida. Só que Adeildo não entendeu o novo século e seguiu na mesma pisada, apalpando coxas desconhecidas sem mesmo pedir licença, sem contar as câmeras que instalou no banheiro feminino da empresa.

Trabalhei para Adeildo porque era o único jeito, naquele momento, e depois porque fui ficando, ficando, até o mês passado. Sempre prevenia as candidatas sobre as intenções do patrão, arriscando meu emprego. Também explicava o funcionamento e segundas intenções do processo seletivo, como se ali fosse uma agencia de atrizes pornô e não um armazém de material de construção. Aliás, Adeildo entendia tudo da cinematografia pornográfica, quando era no cinema, e depois passou a assinar sites de putaria na Internet. Nas entrevistas, ele se comportava como ator, seduzindo à sua maneira as moças desempregadas. Na loja de Adeildo, eu era único homem além dele.

O mais escroto é que não existia vaga nenhuma, na maioria dos casos, e só se a moça fosse realmente um estouro – expressão sempre usada por Adeildo –, ele demitia a anterior e contratava a recém-entrevistada, o estouro. As mulheres estão muito invocadas hoje em dia, eu tentei avisar. Ele não deu bola. Até que aconteceu.

Primeiro, Cleide já deixou o emprego. Foram apenas duas semanas, até ela voltar para casa, indignada, mas silenciosa, mesmo diante das perguntas do marido sobre seu jeito estranho e macambúzio. Mas a substituição foi imediata. Depois, Adeildo começou a apresentar uns sintomas estranhos. Ninguém entendia. Falaram de envenenamento, culparam as feministas. Entre as hipóteses espalhadas pelo bairro, de doenças raras a conspiração, também havia suspeita de um complô Arlete-Cleide.  

Só sei que foi de uma hora pra outra. Hoje Adeildo olha sem envolvimento dos olhos, fita o nada enquanto os dentes sorriem autônomos, como um desenho na cara, quase perfurando a carne, e às vezes transforma o quadro do rosto em quebra-cabeça, peças misturadas, talvez faltando. Um olho ri, outro chora. De um lado a boca traça uma expressão de alívio e do outro parece entrar em desespero. Os músculos desentrosados esboçam alegria, mas o sujeito de perfil só aparenta tristeza. À noite, Adeildo se recolhe para lamentar aquilo, na frente do espelho, e mesmo no sono induzido por remédios as convulsões continuam. Na falta de nome melhor, ou diagnóstico convincente, os médicos tratam o caso como Emoções Desorganizadas.



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