quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Cinema secreto


No tempo do serviço secreto adorava quando me mandavam abortar a operação. Com muito gosto eu voltava ao hotel, arrumava a mala e tirava as balas da minha Walther PPK. Para alguns colegas, senão todos, eu era um fracasso. Nunca pensei desse lado. Acho que uma boa operação não precisa ser posta em prática, pode até ser guardada para outros fins, o cinema, por exemplo. Na agência, todos sabiam que eu levava uma rotina de operações abortadas, mas não sabiam dos meus lucros no mercado negro, vendendo planos secretos para Hollywood.

Muitos eram abortados porque já estavam vendidos. Eu dizia que recebi sinais sobre um vazamento em nosso escritório central e o coronel determinava o fim da operação. Uma dessas foi sucesso de bilheteria e rendeu-me um apartamento em Los Angeles. Não sou tão contraditório. Amo meu país e, se às vezes pratico a traição, é apenas para vivê-lo mais intensamente. Coisas são vendidas e preciso comprá-las.

O principal, no entanto, é que nunca considerei a possibilidade de morrer, mesmo num trabalho dessa natureza, cheio de intrigas e tiroteios. Mantive distância disso, deixei prá lá, nunca fiquei imaginando como seria se o plano fosse executado. Sempre vejo como filmes e o coronel não liga, pois se aborto a operação, outros farão o serviço, de outro modo, e o coronel aparece a seus chefes como sujeito cauteloso porque viu o risco à sua frente e só atacou na hora certa.

Carmen

Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar. Na maioria das vezes estão. Minha prima Carmem só traduzia para “verifique se tem alguma coisa aí porque se não tiver é um buraco”.  Tinha essa mania, já conhecida do prédio; implicava demais com avisos e ditos populares e frases em geral. Reclamava, por exemplo: por que Deus dá o frio conforme o cobertor? Não é mais prático dar o cobertor conforme o frio?  Carmen levava tudo ao pé da letra. Mas eu sempre me convencia de que ela estava certa.


Éramos muito amigos numa época em que parecia estranho um cara sair todo dia com a mesma menina e não acontecer nada, mesmo que fosse uma prima. As distrações eram outras, o universo e suas histórias, teorias mal ajambradas sobre tudo e a recorrente marcação de Carmen em cima de aberrações aceitas pela maioria.    Quem dá aos pobres empresta a Deus, pense nisso, ela disse, enquanto emendava certa indignação pelo Fato de o Todo poderoso aceitar negócios com um agiota. Deus chegou ao ponto de pedir dinheiro? Eu repetia: calma, é só uma maneira de dizer. 

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