Finalmente foi aceita. A organização reunia
jovens senhoras da sociedade com o intuito de fazer o bem não importa a quem.
Com veio da cidade grande, ela foi posta de molho por alguns anos e só quando
marido consolidou-se como médico dedicado e católico praticante, recebeu o
convite, pelo correio, com letras desenhadas.
Não era uma de suas grandes aspirações
pertencer ao grupo, mas se o marido era benquisto na sociedade local –
inclusive recebia muitos presentes, alguns úteis, como o microondas -, não via por
que não assumir seu posto. Letrada e
culta, mas casada com um médico que não conseguiu se estabelecer na capital,
ela só tinha em mente se mandar daquele fim de mundo. Talvez o Clube das Mulheres
proporcionasse alguma diversão, ajudasse o tempo a passar e aplacasse
amargura.
Vida sem graça. Até hoje ela não sabe por
que se casou com aquele homem, um fraco, mas aí é outra história, outra mesmo,
pois imediatamente a mulher se via na pele de uma Emma Bovary turbinada, com
fantasias impossíveis de serem concretizadas no âmbito municipal. Não tinha
alvo, só queria dar uns tirinhos. Por diversão e falta do que fazer entregou-se
a pensamentos sexuais a respeito da agremiação. Criado há 102 anos, hoje
denominado ONG, conforme o estatuto, o clube de mulheres durou tanto tempo
graças ao rigor de seus regulamentos e ao apurado processo seletivo. É o que
está escrito. Mesmo assim, ela sempre imaginou ali a existência de grandes
segredos, uma maçonaria de mulheres, com seus rituais e símbolos, embora movidos
a livros pecaminosos, encontros às escondidas e outras objetivos de ordem
erótica.
Tivesse mais espaço - e, vocês mais tempo -,
haveria uma sutil passagem entre a chegada do médico e sua mulher à pequena
cidade e o transtorno de traições e do atoleiro moral providenciados pelo Clube
das Mulheres. Pelo menos pelo Clube das Mulheres saído da cabeça dela, a
perfeita hipster perdida, longe de sua turma cosmopolita, casada com um pobre
médico do interior. A 480 quilômetros da metrópole, passou a depender muito da
imaginação e menos da realidade. Não havia uma vida pulsando naquelas bandas, só
projeção de vidas da TV. A cidade parava na hora da novela. Então, salta-se
para o casal já plantado no município. Ele satisfeito; ela a contragosto.
O Clube despertou a atenção da mulher do
médico porque, entre suas integrantes havia duas jovens senhoras muito bonitas
e, pelo menos à distância, pareciam também insatisfeitas com a vida
interiorana. Poderiam ser amigas e sairiam juntas dali. Em relação aos homens
da localidade, nenhum interesse. Eram seres rudes e donos da verdade.
Receitava-se em casa. O marido aviava o papel
azul e trazia da farmácia estoques de Rivotril. Clínico geral, nunca percebeu
sinais da insatisfação na mulher. Dava aos males da alma o mesmo tratamento
farmacológico dado a uma bronquite, pois acreditava piamente na origem orgânica
de todas as doenças. Quando ela se recolhia para dormir horas seguidas durante
a tarde, o médico não desconfiava que ele tivesse a ver com aquilo.
Então, por razões inexplicáveis, por
enquanto, ela viveu certa expectativa sobre a primeira reunião do clube. Por
que haveria camadas de sexo sob o antro da moralidade? Pensamentos idiotas, ela
concluiu, mantendo apesar de tudo a esperança de acontecimentos um pouco acima
da normalidade do município.
A reunião foi aberta como de praxe. Leitura
da ata do encontro anterior, informes sobre ações filantrópicas do clube,
finanças e agenda. No mês seguinte, a entidade receberia homenagem do Instituto
Histórico e Geográfico pelo trabalho desenvolvido em prol da comunidade.
Depois, a conversa tornou-se mais amena e menos burocrática. As duas jovens
estavam lá e falavam entre si, nas últimas cadeiras. A mulher do médico notou
sinais de sarcasmo em comentários que nem ouvia. Talvez elas pensassem: “o que
estamos fazenda nesta merda”. Talvez apenas uma impressão.
No decorrer do pequeno conclave, houve
saudações às belezas naturais da região e discussões em torno do açude local e
suas possibilidades turísticas. Ficou nisso. Quase no fim, ocorreu a natural
aproximação entre ela e as moças no fundo.
- Você não é daqui – comentou a mais jovem.
- Não. Venho da capital. Meu marido foi
aprovado num concurso. Viemos há quatro anos. Ele é medico.
- Gosta da cidade? – perguntou a outra.
- Passei bons momentos aqui – mentiu - Mas
creio que é hora de voltar. Vocês sabem, tenho família por lá, país e irmãos.
- Nós detestamos – cortou - Somos engenheiras.
Viemos para construir uma barragem, a partir da transposição do rio. O projeto
parou por algum tempo e terminamos ficando, por falta de outras oportunidades.
Agora o projeto voltou e fomos chamadas novamente. Não conte a ninguém: a
cidade vai sumir. Será coberta pela água da barragem. Todos serão transferidos
para outra área.
Enfim uma boa notícia. Enfim, duas amigas. Aos
poucos deixou escapar três ou quatro insatisfações com a cidade, a falta do que
fazer, um tipo de cultura fechada em si mesma e depois continuaram a conversa no
bar; ela já mais aberta, quase entrando em questões particulares, a vida com o
marido, mas ainda não estava na hora. Tomaram umas cinco cervejas, a conversa
foi ficando animada, descoberta de identidades, gostos parecidos, o caminho
estava aberto.
Lá fora a cidade insistia com seus modos e
costumes e quem passava, comentava. Ainda era estranho três mulheres, sozinhas,
num bar. “E aquela ali é a mulher do médico”, observou um passante, em tom de
censura, deu para ouvir.
Um ano muda alguma coisa. A cidade mudou
muito. As duas engenheiras estavam agora envolvidas com a construção da
barragem. Máquinas de todos os tipos apareceram e se multiplicaram a 18
quilômetros do centro. Como num conto de Murilo Rubião, o movimento quase
frenético de guindastes, escavadeiras, tratores, motos niveladoras e rolos
compressores eram estranhamente ignorados pela população. O diretor da empresa
esteve na prefeitura para explicar a dimensão da obra, a necessidade de
retirada dos moradores e a nova localização do município. O anúncio foi feito
em público, mas em pouco tempo a população preferiu esquecer. Ninguém tocava no
assunto.
O casamento não mudou. Ela agora só resmungava
e mantinha-se quieta graças aos comprimidos e as horas com as duas amigas
engenheiras. Ao final da obra, as três iriam embora. Não para o novo município. Voltariam para a
capital, de preferência sem o médico. Nas horas de fastio, saía de casa e
ficava sentada num barranco, à beira da futura barragem, apenas observando suas
amigas em ação, dando ordens a operários.
Nas folgas das engenheiras, viajavam a cidades
próximas e à capital, se hospedavam em hotéis, faziam sexo com desconhecidos e
entre elas. Íntimas e cúmplice, envolvidas num triângulo mais sexual do que
amoroso, eram, de fato, amigas. O sexo não criava impasses, necessidade de
rearranjos ou ciúmes. Nesse período, nunca brigaram. Concordavam em tudo. A
chegada de estranhos fazia a festa. Um dia, uma equipe de uma TV a cabo foi ao
canteiro de obras para fazer uma matéria sobre a construção da barragem, base
da nova hidrelétrica, e como ficaria a antiga cidade e a nova vila, já em
construção, a jusante do rio. Não foi
preciso muito para tempo para estarem todos juntos, no bar, e desta vez ela
levou o marido para evitar comentários na cidade. O médico parecia envolvido
pela mesma indiferença dos munícipes. Parecia não acreditar no futuro da cidade
sob as águas. Ele queria ir embora daquele restaurante, o melhor da cidade, uma
merda. A mulher não queria. Brigaram e ele foi sozinho. Mais tarde ela voltou,
sem antes de ser vista saindo do hotel, com as duas amigas, o repórter, o
cinegrafista e o produtor da TV a cabo.
Continuava, no entanto, freqüentando o
Clube das Mulheres. Só estranhava o silêncio das associadas sobre as águas que
cobririam a cidade. Estava tudo estranho, na verdade, nesse enredo em que se
meteu, nessa história de casamento fracassado, sexo e engenharia civil. Sem
contar o deslocamento da população, quando a hora chegar. Pensava: é complicado nascer ou viver numa
cidade e amanhecer sem um chão em que você tanto pisou. Como cada uma dessas
pessoas reagirá no momento de deixar a cidade?
Quando o remanejamento das famílias era
iminente, o assunto passou a ser comentado, em forma de lamento, como um
desígnio de Deus, embora o governo fosse o responsável pelas obras. Ela sabia
que todos assinaram um documento concordando com os termos da indenização. A
maioria assinou em silêncio e sem protestos. Ela também assinou, com todo
prazer, “pois se não consigo sair da cidade, pelo menos a cidade sai de mim”.
Ao ver as pessoas desalentadas nas ruas, sentiu um pouco de culpa por ter
comemorado a chegada das águas. Pena que as amigas engenheiras estivessem tão
ocupadas. Queria conversar sobre o fim do município e a reação das pessoas.
Queria ir embora e sentia-se traidora. Nunca teve culpas por trair o marido e
teve culpa naquela hora, vendo o povo passar, cabisbaixo.
A hidrelétrica, de 500 KV, seria construída
para reforçar o abastecimento no Estado. O lago teria 400 km2. Há uma colina
com vista para toda a região. Um ponto privilegiado para observar a enxurrada e
a submersão da cidade. Ela e as engenheiras costumavam subir para conversar,
fumar um baseado, ler poemas de Baudelaire e sentir o cheiro da chuva.
Em sua última reunião, o clube caiu na
real. Clima de consternação. A presidente, ao microfone, chorou ao lembrar que
a organização centenária ia-se agora com a cidade, seria afogada com as casas e
a matriz, e todos os sentimentos do mundo não davam conta daquela perda.
Depois, propôs algo inesperado: “vamos beber”. Ela aproveitou a sugestão e propôs
outra: “na colina”. Apoio por aclamação.
Numa cena de filme bíblico, as mulheres
subiram em fila e a cada rua, e depois a cada povoado, a fila se encorpava,
tornando-se afinal uma linha buliçosa que cobria a inteira distância entre o
vale e o cume da colina. Ficaram por lá, com estoques poderosos de bebidas,
algumas traziam caixas de isopor com cervejas e outras gelo para o uísque. Uma
festa instalou-se no meio da consternação, como se isso fosse possível, mas
ocorreu. Logo todas estavam bêbadas e as engenheiras chegaram a tempo de ver o
início do aguaceiro, tomando aos poucos o mato, lá embaixo, e em seguida mais
visível, no meio das árvores pequenas.
A outra cidade, apenas uma vila, já estava
pronta, na mão dos homens, ajudados por poucas mulheres que ficaram, além dos
velhos. O espetáculo era lá embaixo, no ex-município, agora que a água já
alcançava o portão da igreja. As mulheres choraram abraçadas e ali foram
ficando, com idas eventuais à cidade-acampamento, apenas para levar as crianças
à escola, reabastecer o pequeno bar da colina, e depois passaram a comprar material
de construção, víveres, roupas de banho para tomar chuva e livros salvos da
biblioteca. Assim surgiu uma terceira cidade, em cima da que morreu, sob o
comando do Clube das Mulheres, mas sem obrigações burocráticas, sem atas ou
comunicados, longe da tradição de 102 anos. Ela resolveu ficar, em sua pequena
casa de dois cômodos, dividida com as engenheiras. De vez em quando,
mergulhavam no lago, em saltos acrobáticos, e iam mais fundo, explorando
quartos e segredos sob as águas.
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