quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Carta a uma editora saída do coma



  
Querida Lourdes,

Comecei a mudar a história conforme suas indicações. Queria deixar do mesmo jeito, sem tantas minúcias sobre a paisagem sertaneja, mas se é para ser assim, assim será. Você é a editora. Só convém observar que desde sua saída do coma, em janeiro passado, depois de tantos anos, o mundo da literatura mudou bastante - aliás, o mundo inteiro mudou muito. Conversaremos sobre isso com calma.

Lourdes, já não usamos tanto aquelas descrições imensas do ambiente, típicas do século XIX, pois geografia demais cansa o leitor e às vezes prejudicam as reflexões e os dramas do personagem. Também não recorremos a palavras raras como prova de erudição. Em todo caso, troquei “adoentado” por “enfermiço”, como você marcou, em vermelho.

O que mais preocupa, no entanto, são as oito páginas iniciais, cheias de geologia e botânica. Parece um relatório de impacto ambiental. As figuras centrais do enredo se perderam na Caatinga e não sei como tirá-las de lá. Tenho a sensação de ter virado um Euclides da Cunha de terceira. A heroína Maria, por exemplo, ficou sem alma. Virou uma pedra. Gastei mais tempo na dinâmica da litosfera do que no sofrimento da moça. Como não se trata de um romance de época, não coloquei o pessoal do Ministério de Viação e Obras Públicas (MVOP). A referida repartição deixou de existir nos anos 60, uma década depois do seu lamentável acidente e posterior perda da consciência.

A descrição do interior da casa, por sua vez, fez-me um Proust de quinta, com aqueles detalhezinhos desnecessários sobre a mesa da sala, em madeira de lei, além dos espaldares, arabescos, penas de águia e pétalas de flor feitas em bronze. Nada disso, creio, contribui para a elucidação do crime. A trama, enfim, perde feio para cada detalhe dos moveis em cena. Só serve para encher linguiça que, por sinal, perdeu o trema.

Apesar de tudo, respeito sua posição de editora. Só acho necessário um período de aclimatação e de mais contato com a nova realidade. O romance está ficando com a sua cara e não com a minha, o autor. Fazer o quê? Todos recusaram os originais – o mercado está difícil – e sua volta ao nosso mundo é uma excelente notícia e sou grato por sua disposição em publicar o livro. Vou seguir as instruções. Tirei as ironias, as críticas ao padre, as suspeitas que recaem sobre o juiz e aquela piada sobre o general Médici. PS: os civis voltaram ao poder.

Em todo caso, sugiro que você compre um computador. Quase todo mundo tem um, em casa, e dentro dele – ou melhor, fora – existe uma rede de informações muito peculiar, chamada Internet. Talvez você mude sua visão sobre o mundo editorial e sobre o mundo em geral. É assustador e deslumbrante. Com o tempo, a gente entende como funciona.

De resto, tenho más notícias. Vários de seus amigos estão mortos, entre eles o JG de Araujo Jorge. Sei que as pessoas próximas têm evitado passar informações desagradáveis, mas não resisto. O Sarney, aquele político do Maranhão, entrou para a Academia e a literatura católica tem agora outro nome de peso, o Paulo Coelho, que vende mais livros do que Tristão e Gustavo Barroso juntos. Se você estiver sentada, ou ainda deitada, vai outra: há livros que não são de papel. Depois eu explico.

Muita coisa para contar, minha querida, mas paro aqui. Estou imensamente feliz com sua volta à editora. Desde seu acidente não publico uma única linha impressa.

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