Querida Lourdes,
Comecei a mudar a história conforme suas
indicações. Queria deixar do mesmo jeito, sem tantas minúcias sobre a paisagem
sertaneja, mas se é para ser assim, assim será. Você é a editora. Só convém
observar que desde sua saída do coma, em janeiro passado, depois de tantos
anos, o mundo da literatura mudou bastante - aliás, o mundo inteiro mudou
muito. Conversaremos sobre isso com calma.
Lourdes, já não usamos tanto aquelas
descrições imensas do ambiente, típicas do século XIX, pois geografia demais
cansa o leitor e às vezes prejudicam as reflexões e os dramas do personagem.
Também não recorremos a palavras raras como prova de erudição. Em todo caso,
troquei “adoentado” por “enfermiço”, como você marcou, em vermelho.
O que mais preocupa, no entanto, são as
oito páginas iniciais, cheias de geologia e botânica. Parece um relatório de
impacto ambiental. As figuras centrais do enredo se perderam na Caatinga e não
sei como tirá-las de lá. Tenho a sensação de ter virado um Euclides da Cunha de
terceira. A heroína Maria, por exemplo, ficou sem alma. Virou uma pedra. Gastei
mais tempo na dinâmica da litosfera do que no sofrimento da moça. Como não se
trata de um romance de época, não coloquei o pessoal do Ministério de Viação e
Obras Públicas (MVOP). A referida repartição deixou de existir nos anos 60, uma
década depois do seu lamentável acidente e posterior perda da consciência.
A descrição do interior da casa, por sua
vez, fez-me um Proust de quinta, com aqueles detalhezinhos desnecessários sobre
a mesa da sala, em madeira de lei, além dos espaldares, arabescos, penas de
águia e pétalas de flor feitas em bronze. Nada disso, creio, contribui para a
elucidação do crime. A trama, enfim, perde feio para cada detalhe dos moveis em
cena. Só serve para encher linguiça que, por sinal, perdeu o trema.
Apesar de tudo, respeito sua posição de
editora. Só acho necessário um período de aclimatação e de mais contato com a
nova realidade. O romance está ficando com a sua cara e não com a minha, o
autor. Fazer o quê? Todos recusaram os originais – o mercado está difícil – e
sua volta ao nosso mundo é uma excelente notícia e sou grato por sua disposição
em publicar o livro. Vou seguir as instruções. Tirei as ironias, as críticas ao
padre, as suspeitas que recaem sobre o juiz e aquela piada sobre o general
Médici. PS: os civis voltaram ao poder.
Em todo caso, sugiro que você compre um
computador. Quase todo mundo tem um, em casa, e dentro dele – ou melhor, fora –
existe uma rede de informações muito peculiar, chamada Internet. Talvez você
mude sua visão sobre o mundo editorial e sobre o mundo em geral. É assustador e
deslumbrante. Com o tempo, a gente entende como funciona.
De resto, tenho más notícias. Vários de
seus amigos estão mortos, entre eles o JG de Araujo Jorge. Sei que as pessoas
próximas têm evitado passar informações desagradáveis, mas não resisto. O
Sarney, aquele político do Maranhão, entrou para a Academia e a literatura
católica tem agora outro nome de peso, o Paulo Coelho, que vende mais livros do
que Tristão e Gustavo Barroso juntos. Se você estiver sentada, ou ainda
deitada, vai outra: há livros que não são de papel. Depois eu explico.
Muita coisa para contar, minha querida, mas
paro aqui. Estou imensamente feliz com sua volta à editora. Desde seu acidente
não publico uma única linha impressa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário