sábado, 19 de janeiro de 2013

Teoria dos seis graus de separação e sexo no subúrbio





Afrânio concluiu sua tese de doutorado sobre as classes sociais nas redes sociais. Alguém já deve ter pensado nisso e Afrânio parte da estratificação de classes dentro do Facebook para chegar à conclusão bem besta e evidente: a vida virtual repete a vida social.  Ele discorda da falta de ineditismo e sempre repete a frase de Nelson - "Só os profetas enxergam o óbvio”. O texto, no entanto, é bom. Daria um romance, caso não achasse a vida acadêmica o último degrau da existência humana. Encaixa muito bem os perfis de gente do subúrbio, que só conhece gente do subúrbio, e de gente da classe média para cima, cujo circulo de amizades raríssimas vezes se estende à periferia. O que estraga a leitura são os gráficos e tabelas.

Afrânio, um sujeito quase mauricinho - e seria mauricinho caso não conhecesse a filosofia ocidental como ele conhece -, resolveu abrir um perfil suburbano para adicionar o pessoal que faz churrasco na laje e participa de concurso de beleza em baile funk. Não fez muitos amigos. Os colegas da universidade até mantiveram contatos com pesquisados mais pobres, mas Afrânio ficou quase sozinho no Facebook. Deu-se nesse momento, em que depôs as armas, o estalo radical. Afrânio mudou-se para o subúrbio. Levou consigo uma família engajada em sua ciência. O chato seria deixar a moto. Sim, Afrânio gostava de Espinosa e de motos.

Tarefa difícil. Fazer novos amigos, aderir a novos costumes etc. O primeiro dia foi meio conturbado porque Afrânio não conseguiu dormir com o barulho do pagode. Diferença anotada: todo mundo na novela e ele na BBC. Havia ainda a decoração da casa. Encaixotou todas as coisinhas chics compradas nos Jardins e colocou um Coração de Jesus na sala. A mulher, também letrada e titulada, achou aquilo algo provocativo, pois parecia um kitsch deliberado, aquela conversa toda a respeito do pós-moderno. “Querida, esse debate não está posto neste bairro; quero apenas mostrar que sou um deles para provar minha tese”, argumentou Afrânio.

Aos poucos as coisas foram se acomodando. As duas filhas gêmeas estavam no colégio público e a mãe fazia uma ginástica danada para sair pobre de casa e chegar toda produzida à universidade. Ela mudava de roupa em sua sala e, ao final do expediente, vestia-se de pobre novamente. Uma gata borralheira ao contrário. Esses percalços do dia a dia terminavam animando o jantar, quase sempre um franguinho de padaria e seus habituais acompanhamentos: batata e farofa. `Mais discretamente, comiam chocolate amargo e coisinhas naturais.

De certa forma, a família trabalhou unida nesse projeto. A filha mais velha – nasceu dois minutos antes da outra -  atraiu para seu face quase metade dos homens do bairro. Era a mais bonita da escola e talvez a mais bonita daquelas imediações, num raio de quase cinco quilômetros. Deu-se bem com as novas colegas – Rosicleide e Rosineide – e teve até um breve namoro com Walteier, interrompido por questões de gostos e costumes. Teve outros e mais outros, casos ligeiros, rapidinhas. De repente, a menina fez com que seus admiradores migrassem para a página do pai. A quantidade já era suficiente, só faltava o cruzamento de dados com a classe média e a alta para se ter uma idéia de falta de intersecção entre as camadas sociais do Facebook. Trabalho de campo concluído, hora de voltar às origens. Afrânio e família retornaram para a Zona Oeste e a ex-adolescente, agora uma adulta, pode, finalmente, reatar suas relações com a Camila, a Fê e a Rê.

A mulher estava aliviada e culpada. Ela pensando: ”a gente chega lá, extrai o que quer e depois vai embora”. O alívio, no entanto, venceu a batalha. O subúrbio era desconfortável e a qualidade dos produtos era péssima. “O ideal seria que todos ascendessem”, voltou a pensar, mas logo se conformou: “Uma revolução nos dias de hoje está completamente fora de questão, mas de certa forma existe um movimento no sentido do empodeiramento (sic) da classe C”, pensou de novo. 

O marido, ao contrário, não tinha dramas. Iria mostrar ao mundo acadêmico uma perfeita biografia coletiva e pessoal do subúrbio, com observações agudas sobre o dia a dia de gente simples, sentindo-se o próprio Nelson Rodrigues misturado com estatísticas, e não bastasse estava ali, naquelas 600 páginas, o trabalho único e original sobre as relações entre dois mundos paralelos que não se encontraram, ou se encontram pouco, e pouco se referem um ao outro, porque são dois mundos muito diferentes, tanto na vida real quanto na virtual.

A tese de Afrânio foi rejeitada por ampla maioria. Os julgadores levaram em conta a teoria dos seis graus de separação, segundo a qual são necessários no máximo seis laços de amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas de algum modo, virtual ou pessoalmente. Afrânio não tirou nenhuma lição desse episódio – e por que deveria tirar? - e continua certo de suas certezas. Para ele, seis graus de separação são a prova de que nosso mundo está mesmo estratificado, dividido entre pobres e ricos, e tende a ficar assim caso não ocorra uma fusão de culturas, tema de sua próxima tentativa diante da banca.

Não iria se render ao não dos professores doutores. Faria nova tese, nem que fosse para outra universidade, utilizando os mesmos dados da primeira, mas enveredando sobre a questão da cultura, relacionando-a com o modo de produção capitalista.

A filha, porém, foi mais rápida. Tinha preparado um diário de sua vida no subúrbio, carregado de detalhes picantes e observações engraçadas. Conhecera a fundo a volúpia das classes C e D e cuidou de anotar cada detalhe de suas relações com os rapazes e meninas do bairro. Eles se sentiam incrédulos e agradecidos diante daquela gata, nua, perfeita, sem barriga, fruto de uma alimentação balanceada. A moça tinha especial atração pelos evangélicos, mais difíceis, contidos. Mas cediam. Nenhuma crença religiosa neste mundo resistiria àquele par de coxas.   

Os originais da menina terminaram aceitos por uma grande editora. O livro virou best-seller e a família de Afrânio ficou rica e mais distante das pessoas que pregam o Coração de Jesus na sala. Menos o obstinado Afrânio, agora empenhado em provar a falsidade da teoria de seis graus de separação. Não ficou chateado com a filha por questões morais; apenas discorda de sua metodologia e falta de rigor científico. 

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