Afrânio concluiu sua tese de doutorado
sobre as classes sociais nas redes sociais. Alguém já deve ter pensado nisso e
Afrânio parte da estratificação de classes dentro do Facebook para chegar à
conclusão bem besta e evidente: a vida virtual repete a vida social. Ele discorda da falta de ineditismo e sempre
repete a frase de Nelson - "Só os profetas enxergam o óbvio”. O texto, no
entanto, é bom. Daria um romance, caso não achasse a vida acadêmica o último degrau
da existência humana. Encaixa muito bem os perfis de gente do subúrbio, que só
conhece gente do subúrbio, e de gente da classe média para cima, cujo circulo
de amizades raríssimas vezes se estende à periferia. O que estraga a leitura
são os gráficos e tabelas.
Afrânio, um sujeito quase mauricinho - e
seria mauricinho caso não conhecesse a filosofia ocidental como ele conhece -, resolveu
abrir um perfil suburbano para adicionar o pessoal que faz churrasco na laje e
participa de concurso de beleza em baile funk. Não fez muitos amigos. Os
colegas da universidade até mantiveram contatos com pesquisados mais pobres,
mas Afrânio ficou quase sozinho no Facebook. Deu-se nesse momento, em que depôs
as armas, o estalo radical. Afrânio mudou-se para o subúrbio. Levou consigo uma
família engajada em sua ciência. O chato seria deixar a moto. Sim, Afrânio
gostava de Espinosa e de motos.
Tarefa difícil. Fazer novos amigos, aderir
a novos costumes etc. O primeiro dia foi meio conturbado porque Afrânio não
conseguiu dormir com o barulho do pagode. Diferença anotada: todo mundo na
novela e ele na BBC. Havia ainda a decoração da casa. Encaixotou todas as
coisinhas chics compradas nos Jardins e colocou um Coração de Jesus na sala. A
mulher, também letrada e titulada, achou aquilo algo provocativo, pois parecia
um kitsch deliberado, aquela conversa toda a respeito do pós-moderno. “Querida,
esse debate não está posto neste bairro; quero apenas mostrar que sou um deles
para provar minha tese”, argumentou Afrânio.
Aos poucos as coisas foram se acomodando. As
duas filhas gêmeas estavam no colégio público e a mãe fazia uma ginástica
danada para sair pobre de casa e chegar toda produzida à universidade. Ela
mudava de roupa em sua sala e, ao final do expediente, vestia-se de pobre
novamente. Uma gata borralheira ao contrário. Esses percalços do dia a dia
terminavam animando o jantar, quase sempre um franguinho de padaria e seus
habituais acompanhamentos: batata e farofa. `Mais discretamente, comiam
chocolate amargo e coisinhas naturais.
De certa forma, a família trabalhou unida
nesse projeto. A filha mais velha – nasceu dois minutos antes da outra - atraiu para seu face quase metade dos homens
do bairro. Era a mais bonita da escola e talvez a mais bonita daquelas
imediações, num raio de quase cinco quilômetros. Deu-se bem com as novas
colegas – Rosicleide e Rosineide – e teve até um breve namoro com Walteier,
interrompido por questões de gostos e costumes. Teve outros e mais outros,
casos ligeiros, rapidinhas. De repente, a menina fez com que seus admiradores
migrassem para a página do pai. A quantidade já era suficiente, só faltava o
cruzamento de dados com a classe média e a alta para se ter uma idéia de falta
de intersecção entre as camadas sociais do Facebook. Trabalho de campo
concluído, hora de voltar às origens. Afrânio e família retornaram para a Zona
Oeste e a ex-adolescente, agora uma adulta, pode, finalmente, reatar suas
relações com a Camila, a Fê e a Rê.
A mulher estava aliviada e culpada. Ela pensando:
”a gente chega lá, extrai o que quer e depois vai embora”. O alívio, no
entanto, venceu a batalha. O subúrbio era desconfortável e a qualidade dos
produtos era péssima. “O ideal seria que todos ascendessem”, voltou a pensar,
mas logo se conformou: “Uma revolução nos dias de hoje está completamente fora
de questão, mas de certa forma existe um movimento no sentido do empodeiramento
(sic) da classe C”, pensou de novo.
O marido, ao contrário, não tinha dramas. Iria
mostrar ao mundo acadêmico uma perfeita biografia coletiva e pessoal do
subúrbio, com observações agudas sobre o dia a dia de gente simples,
sentindo-se o próprio Nelson Rodrigues misturado com estatísticas, e não
bastasse estava ali, naquelas 600 páginas, o trabalho único e original sobre as
relações entre dois mundos paralelos que não se encontraram, ou se encontram
pouco, e pouco se referem um ao outro, porque são dois mundos muito diferentes,
tanto na vida real quanto na virtual.
A tese de Afrânio foi rejeitada por ampla
maioria. Os julgadores levaram em conta a teoria dos seis graus de separação,
segundo a qual são necessários no máximo seis laços de amizade para que duas
pessoas quaisquer estejam ligadas de algum modo, virtual ou pessoalmente.
Afrânio não tirou nenhuma lição desse episódio – e por que deveria tirar? - e
continua certo de suas certezas. Para ele, seis graus de separação são a prova
de que nosso mundo está mesmo estratificado, dividido entre pobres e ricos, e
tende a ficar assim caso não ocorra uma fusão
de culturas, tema de sua próxima tentativa diante da banca.
Não iria se render ao não dos professores
doutores. Faria nova tese, nem que fosse para outra universidade, utilizando os
mesmos dados da primeira, mas enveredando sobre a questão da cultura,
relacionando-a com o modo de produção capitalista.
A filha, porém, foi mais rápida. Tinha
preparado um diário de sua vida no subúrbio, carregado de detalhes picantes e
observações engraçadas. Conhecera a fundo a volúpia das classes C e D e cuidou
de anotar cada detalhe de suas relações com os rapazes e meninas do bairro.
Eles se sentiam incrédulos e agradecidos diante daquela gata, nua, perfeita,
sem barriga, fruto de uma alimentação balanceada. A moça tinha especial atração
pelos evangélicos, mais difíceis, contidos. Mas cediam. Nenhuma crença
religiosa neste mundo resistiria àquele par de coxas.
Os originais da menina terminaram aceitos
por uma grande editora. O livro virou best-seller e a família de Afrânio ficou
rica e mais distante das pessoas que pregam o Coração de Jesus na sala. Menos o
obstinado Afrânio, agora empenhado em provar a falsidade da teoria de seis
graus de separação. Não ficou chateado com a filha por questões morais; apenas
discorda de sua metodologia e falta de rigor científico.
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