Jade
Uma cançãozinha sobre o mar animava
corações em chamas numa madrugada de 1979, ano distante, século passado, quando
todos se reuniam para suspirar e ver o por do sol. No violão, Ataíde. Não era
um bom nome para representar aquela fase muito boa das nossas vidas no pedaço
mais especial do litoral brasileiro (pelo menos pra gente). A emoção nos inebriava o dia inteiro e, à
noite, qualquer coisa era motivo de intensa contemplação: estrelas, as ondas,
um avião da Varig se preparando para pousar lá adiante. Havia uma frenética
confusão de casais porque, entre outras coisas, parecia um desperdício levar
uma vida apenas a dois. Daí a turma, a tentativa de se unir ao universo e o
gosto por músicas sobre a natureza; daí uma sensação de que aquilo não acabaria
nunca mais.
Quando acabou, muito rápido, começo dos 80’,
encontrei Ataíde numa mesa de bilhar em São Paulo. Jogamos muito mal e bebemos
muito bem e na hora em que os bares fecharam fomos para meu apartamento
conversar sobre aquela época. Eu disse a Ataíde que ele era a minha imagem dos anos
70, depois de Jade, a carioca. Disse também a Ataíde que seu nome não combinava
com nosso jeito de viver, mas sua música era o retrato da geração etc, enfim,
uma conversa de bêbados, porque não gosto mais das músicas de Ataíde. No dia
seguinte lembrei-me de tudo e só tinha me esquecido de pegar o telefone dele,
pois um velho conhecido sempre é um alento numa cidade desconhecida. Então passei
mais três anos até reencontrar o amigo, desta vez numa campanha eleitoral, no
interior do Estado, só que ele trabalhava para um candidato e eu para o outro.
Um encontro naquelas condições seria impossível porque o meu chefe, o
marqueteiro, considerava a eleição do deputado a prefeito uma questão de vida
ou morte e para isso cercou-se de todos os cuidados e proibições para o pessoal
da equipe, que não podia beber ou manter qualquer tipo de contato com o pessoal
adversário.
Eu sabia, Ataíde sabia. Estávamos ali só
para pegar a grana e passar uns meses gastando com namoradas, discos, livros e
bebidas. Eu queria notícias de Jade, a carioca, porque enquanto Ataíde
despachava seus hits na praia nordestina, fiquei inteiramente tomado pela visão
de Jade e, nos dias seguintes, Jade apareceu e revelou, sem maiores preâmbulos,
sua vontade de dar para mim. Aconteceu num clima em que até a exasperação era
boa. Por não esperar nada do corpo – ela era tão interessante por outros
motivos -, é que o corpo terminou sendo uma grande surpresa, um alumbramento,
uma perfeição. Nunca se deixou prender por atrações alheias ao seu talhe
anatômico, normalmente bem coberto, por aqueles vestidos até o calcanhar ou
mesmo por causa do maiô, ainda usava maiô nos anos 70, mas Jade brilhava por
razões mais rarefeitas. A risada, aquela coisa toda meio hippie ou o jeito de
entender e responder às grandes questões como se fossem banalidades, talvez
fizessem dela uma raridade entre as da mesma espécie. Mas o corpo foi um susto,
uma enorme emoção em todos os sentidos, a imaginar que além de tudo havia
aquilo, e sentia que estava diante do maior evento visual da existência. Hoje, bastava ser uma voz distante e já valia
a pena, pois ela tinha algo de único, embora estivesse de corpo e alma nus naquele
dia, como sempre estiveram, e só ali percebi.
Depois, ela sumiu, e sumimos todos, por uma
série de circunstâncias, incluindo a necessidade de arrumar emprego. Minha
ansiedade para conversar com Ataíde era mais por Jade e menos por rememorações
da turma.
Na campanha, a disciplina militar do
marqueteiro no campo de concentração da produtora de vídeo impedia qualquer
aproximação com Ataíde, exceto por breves encontros, na Mesbla local, onde
conversamos como espiões entre cabides, manequins e araras. Ninguém queria
passar segredos de campanhas, eu mesmo só queria marcar um encontro com Ataíde,
no dia seguinte à apuração das urnas, para obter pistas de Jade, a carioca.
Quando estava bêbado, naquele dia do
bilhar, Ataíde contou que tinha notícias dela, mas eu não estava em condições
de conduzir a entrevista, embora seja (ou “fosse”, não sei) jornalista. Ataíde
também era jornalista, mas nunca esteve numa redação. Sempre viveu, depois
daquele tempo na praia, como um infeliz assessor de imprensa, tentando levar a
sério a missão empresarial do cliente e empenhado em passar aquilo para
jornalistas bastante inamistosos. Ele era atendido às pressas, ao telefone, ou
mandavam dizer que estavam em outra ligação. Um desses caras, editor de economia,
passou quatro anos e seis meses numa ligação. Era o mínimo, em termos de
humilhação. Durante um raro encontro com jornalistas de verdade, os de
redações, o álcool bateu na sinceridade de um jovem repórter e ele olhou para
Ataíde, imitando o Nelson Rodrigues, e mandou o meu amigo enfiar a empresa no
cu. “Para de mandar releases, caralho; só tem pauta de merda”, observou o
rapaz, num tom bem incisivo, apesar da bebedeira. Ai Ataíde saiu de fininho.
Não era sua turma. Sua turma também não estava nas assessorias, ambientes bastante
competitivos, cheios de segredos, mas carentes de afeto e direitos
trabalhistas. Se não sair nada sobre o cliente, o cliente vai embora, teremos de
reduzir os custos, e você vai junto porque atendia o cliente. Tem lógica. O
chefe usava essa língua, além disso, se auto-intitulava nos cartões de visita
como diretor-presidente. Diretor presidente de uma sala alugada no centro.
A campanha acabou e meu candidato perdeu. Daria
minhas congratulações a Ataíde e assunto encerrado; iríamos a um papo mais sério.
Só que encontrei um Ataíde vitorioso demais. Eu estava errado, Ataíde dava
importância à campanha e até mostrou certo alinhamento ideológico com o
candidato, cuja principal característica era não ter ideologia alguma. Pensei
em dizer “congratulações” de novo, mas percebi que a questão era mais séria.
Com ar superior, Ataíde abriu o jogo: iria ficar na cidade, montar sua própria
produtora, a grana tinha sido boa. Deve ser igual no futebol; ganhou, recebe
bicho, um extra, porque levei uma mixaria naquela campanha, suficiente para
comprar um aparelho três-em-um* e guardar para dois meses de vida modesta,
quase sem sair de casa.
Desse dia em diante passei mais um tempo
sem notícias de Ataíde. A última é que tinha pegado a conta publicitária da
Prefeitura e iria se casar, não sei com quem. A conversa sobre Jade, a carioca,
seria mais uma vez adiada. Deixei pra lá, o calendário foi correndo, Ataíde caindo
no esquecimento, aliás, só no meu esquecimento. Um dia, quando abri o jornal,
estava lá a notícia sobre a prisão de Ataíde. Havia se metido numa licitação e
ele mesmo tinha tratado de falsificar a documentação, de forma muito grosseira,
por sinal, conforme mostrou a página de política. A conversa sobre Jade estava
cada vez mais distante. Eu não iria visitar Ataíde na cadeia. Pensariam que tinha
alguma coisa com aquilo, estive na mesma cidade etc. Mas a vontade de saber
sobre Jade era grande. Era a única pessoa na qual eu pensava com freqüência e todos
os pensamentos levavam a um mundo sem precedentes na minha história sem
importância. Quer dizer: aqueles anos foram importantes (pelo menos pra gente).
Naquele tempo não havia Internet e sair por
ai perguntando “conhece Jade?” seria uma busca insana. Hoje bastaria colocar o
nome dela no Google e apertar uma tecla, se é que ainda se apertam teclas. Mas
isso é outra história. Iria esperar Ataíde sair da cadeia, desta vez com
certeza mais humilde, para finalmente chegarmos a Jade. Nesse meio tempo fiquei
imaginando mil possibilidades para Jade do presente. Poderia ter morrido,
virado bandida, monja budista ou gorda. Tudo bem, gorda, se manteve aquele
jeitinho brejeiro de olhar, tudo bem.
Como intenção aqui é de breve relato, uma
vez que contos ou coisa parecida costumam se espichar, virar um projeto de
romance e morrer de inanição mais na frente, encontrei com Ataíde uma semana
depois do habeas-corpus. Ele estava abatido com o sumiço dos amigos e ficou
emocionado comigo, o que sobrou, segundo ele. Eu queria falar de Jade, mas
Ataíde parecia ter urgência em explicar porque foi preso, um mal entendido, na
versão dele, pois se envolveu num procedimento corriqueiro nas repartições
públicas e teve azar de ter sido denunciado pelo blog da política da cidade.
Foi vingança, garantiu Ataíde. O dono do blog também participou da campanha e
sonhava com a conta que ele terminou ganhando. Problemas municipais, enfim. Não
estava muito preocupado com isso, estava preocupado em descobrir o paradeiro de
Jade e não sabia direito o porquê dessa obsessão.
Eu tinha uma identificação forte com Ataíde,
na verdade. Ambos fracassamos em termos do esperado pela família, ambos éramos
promessas não cumpridas. Nos anos 70 apostavam muito na gente, o nosso povo da
praia, peles muito bronzeadas e a gente falando difícil, eu e Ataíde, sobre a
possibilidade de uma luta armada contra o governo, já em andamento e já em
direção ao fracasso. Era um pensamento sincero e seria normal ter um retorno
feminino. Uma situação justa: nós nos interessávamos por meninas que
“estivessem por dentro”, informadas, e seria natural que elas também se
interessassem por nós dois. Antigamente, as mulheres jovens se ligavam mais nessas
histórias, política etc. Não sei, só acho, não sou mais jovem. Jade era assim,
informada, mas suas intervenções eram naturais, normalmente com potencial de
encerrar conversas, palavra final, e era a mais nova de todas. Nessas horas,
fazíamos silêncio, depois de balançar a cabeça em concordância, e segurando
exclamações diante de garota tão sábia e sem vaidades. Jade era uma propriedade
coletiva da turma, um orgulho, fazíamos um esforço danado para não tratá-la sem
muita deferência. Então foi uma surpresa quando ela disse que queria trepar
comigo.
Só fui ficando com essa imagem, o corpo e
alma de Jade, conforme disse a Ataíde, quando o encontrei em sua fase
pós-cadeia. A prisão de Ataíde era um enredo longo, cheio de espaços para
reflexões sobre honra e ética, enquanto meu objetivo era conduzir a conversa
para Jade e seu destino.
- Um homem preso – disse Ataíde – torna-me
menos humano, perde as referências, o respeito, a auto-estima e outros
predicados que hoje nos diferenciam. Estou abaixo de você em qualquer escala.
- Que é isso? – ponderei. Você não matou e
se roubou é um caso ainda a ser esclarecido, prova disso é que soltaram você.
Falta de substância no processo. Não é hora de sofrer. Um dia você vai provar sua
inocência e se não provar a pena prescreve, o tempo vem por cima e termina o
serviço. O negócio é não desanimar (preâmbulo para entrar no que interessa).
Você devia seguir o exemplo do pai de Jade, a Jade, lembra dela? Falar nisso,
onde anda a Jade?
- Sim. O que houve com o pai da Jade? (eu ainda
não tinha ainda a história do pai da Jade, mas vamos lá).
- O pai da Jade – comecei – esteve preso
por cinco anos sob acusação de assassinato. Durante esse período estudou Direito
e partiu para provar que era inocente. Provou,
Ataíde.
Não sei por que ficava cheio de dedos na
hora de perguntar sobre Jade. Daria até para abrir o jogo: é isso, Ataíde, eu
ainda estou apaixonado por Jade e já se passaram quase 20 anos.
- Parece que o pai da Jade morreu, não sei,
já era muito velho. Mas e a Jade, você tem notícias dela?
- Tenho, mas preferia não falar sobre isso.
_- Por que, Ataíde – perguntei,
desconfiado.
-
Durante sua longa ausência – respondeu Ataíde, meio sei jeito – aconteceram
muitas coisas. Não sei como se perde o contato com as pessoas como você perdeu,
mas deixa pra lá. Olha, fui casado com Jade durante dez anos. Temos um filho,
que está com ela, fora do País.
Eu esperava qualquer coisa, menos isso. Devia
ter levado em conta a possibilidade. Foi o violão. Naquele tempo, tocar violão
fazia diferença para as mulheres. Comecei a odiar Ataíde, mas queria o resto da
conversa. Segurei o ódio. O mesmo ódio que gente sentia por alguns
entrevistados, como o comandante do II Exército. Um homem pequeno e duro,
insensível. Reagia às perguntas com um olhar ameaçador. Ataíde não era nada
ameaçador. Não fez nada demais, destruiu meus sonhos sem querer, e eu não
estava lá para evitar o casamento, me casar com Jade no lugar dele. Problema
meu. Saí da parada, fui para São Paulo, não sei por que, mas gostei e estamos
aqui, eu e Ataíde, até hoje, e naquele dia meu ódio era difícil de explicar, e
ele não estava disposto a contar. Tinha que contar. Se foi assim, Ataíde, você
vai ter que contar. Foi ai que ele abriu os braços, tomou ar e abriu o longo
parágrafo que segue:
- Sente
ai, vou contar. Quando você foi embora,
Jade também sumiu por uns tempos. Um ano, mais ou menos. De repente todo mundo
sumiu. Ninguém procurou ninguém. Houve uma dispersão a partir do nada. Estava
certo que iria acabar. Eu mesmo não aguentava mais sair do trabalho, tomar um
banho rápido e correr para o bar da praia, todo santo dia. Aguentar, eu aguentava.
Eu achava ótimo aquilo, nossos amigos, mas comecei a ficar exausto,
fisicamente. Porque tínhamos sexo quase a cada noite, de um jeito ou de outro,
porque jogávamos emoção demais, mesmo num relacionamento de um dia; um dia
parecia uma eternidade, as horas não passavam, e era bom assim. O dia não era
devagar, era cheio, denso e consumia forças e saúde, e mesmo assim era longo e
intenso. O dia aparentava durar mais por causa da energia contida nele; era
tanta e ia sendo liberada em grandes quantidades, a cada minuto da vida. Maconha
e ácido também ajudavam a tornar tudo mais extenso, com dois lados, misturados,
realidade e fantasia. Mas chega uma hora em que não dá mais. Jade consumiu suas
energias ali. Quando a encontrei por acaso, anos depois, ela não tinha mais
aquela graça, a aura percebida por você e por todos. Era apenas uma mulher a
procura de trabalho, tentando terminar um curso de Direito numa dessas
faculdades de terceira linha. Mais tarde, ligou para mim, no meio de uma
segunda-feira. Disse que estava em casa, sozinha, e chorava. Fui. Ela estava
vivendo num lixo, o apartamento era um lixo, com roupas espalhadas no chão,
sacos plásticos vazios por toda parte e uma pilha de pratos para lavar, alguns
com matéria em decomposição. Um cenário bem diferente da nossa praia alegre.
Jade estava num canto, continuava chorando, e pediu desculpa pela bagunça. Uma
bagunça grande, por sinal, porque estava dentro e fora daquele apartamento e
principalmente estava dentro dela.
Ataíde
fez uma pausa e agora aproveito para mudar de parágrafo.
- Passei
a freqüentar a casa de Jade. Arrumamos junta aquela bagunça e um dia tivemos
relações sexuais no meio da sala, sem preliminares, como naquele filme do
Michael Douglas. Eu estava só, ela estava só, e terminou em casamento. Juntamos
as coisas e nos mudamos para meu apartamento, uma quitinete na Augusta. Mas o
tempo destruiu meu interesse por ela, quando meu filho já tinha três anos. Ela
foi embora. Depois, eu ainda pegava o menino nos fins de semana, em seguida a
cada quinze dias e mais na frente, ela viajou. Viajou e casou com um
norte-americano. Um completo careta, médico e republicano. Jade parecia não
querer mais felicidade; queria segurança e proteção. O Brasil estava na merda e
hordas de brasileiros partiram para os Estados Unidos atrás de uns trocados.
Jade deu mais sorte. Conheceu o cara em São Paulo. Não sei como se deu esse
cruzamento; bem provável que ela tenha se cansado da depressão. Queria conhecer
o mundo de uma cidadezinha do Meio Oeste, cheia de fofoqueiros moralistas. Ao
que tudo indica, Jade adaptou-se ao novo modo de vida. Morar com um médico
tinha sua utilidade e ele era psiquiatra. O cara estava levando uma paciente
para casa e não sabia.
Ataíde
tornou-se ainda mais detalhistas e só assim eu soube que ele teve uma recaída e
foi atrás dela, em Thompson City, causando um barraco histórico na cidadezinha.
Voltou sozinho para as assessorias de imprensa. Nesse momento eu pensei: agora
é a minha vez de ir a Thompson City. E fui.
Tompson
City
Tompson
City era – e talvez ainda seja - uma típica cidade norte-americana ao extremo.
Tinha suas efemérides patrióticas e frisson generalizados no Dia de Ação de
Graças e 14 de julho. Havia bailes de formatura e a ansiedade das adolescentes
à espera de um convite masculino para o baile. Os homens eram rudes e usavam
camisas quadriculadas. Todos se conheciam e cumprimentavam o xerife. Uma cidade
saída dos livros das escolas de inglês, com famílias bem definidas, sem
problemas aparentes, conversa rasa, um bar com sinuca, lavanderia e a igreja
aos domingos.
O mais
estranho é que se instalou ali uma comunidade de hippies tardios, na verdade
doidões sem filosofia definida e vida errante, cuja parada em Thompson City
talvez tenha sido resultado da dificuldade de seguir em frente por falta de
combustível. Em Thompson, eles disseram chega, é aqui. Jade morava no lado
burguês da pequena cidade, numa distância segura dos inconvenientes imigrantes,
alguns deles de origem latina, peruanos e chilenos em sua maioria.
Torrei
parte do dinheiro da campanha para assumir as prestações com a passagem, tirar
visto para os EUA – um suplício, pois não tinha emprego fixo – e roupas de
frio. Desci em Nova York e segui para lá de carro alugado, com o endereço dado
por Ataíde. Disse apenas que estava com a viagem programada e aproveitaria para
rever a velha amiga. Ataíde pediu que levasse um presente para seu filho.
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