quarta-feira, 27 de julho de 2011

Viver não é assim

O cheiro de morte chegou antes da morte. Algumas partes do corpo já exalavam o trailer do desfecho. Contas vencidas na porta, não recolhidas, era outro sinal. No meio da sala, deitado e nu, perdia peso e líquidos, embora a mente continuasse ativa, para não deixar o rito final despedido de alguma substância literária. Imaginava pequenos contos, cada vez mais delirantes, enquanto o cérebro se separava do corpo dormente. Não sentia nada abaixo do pescoço, mas os pensamentos fluíam com certa qualidade e estilo e personagens complexos. Ele próprio, naquele estado, já era um deles. Havia ainda o ar pesado dentro de casa, já formando gases, criando uma atmosfera bioquímica lúgubre e fedorenta, ideal para o momento. Deu tempo para imaginar a presença do poeta Augusto dos Anjos, sentado num cantinho, anotando tudo. Deu tempo de dar várias voltas e retornar ao mesmo lugar quando a porta foi arrombada.

O cortiço paulistano foi enfim exposto à visitação pública: dois PMS, três vizinhos e depois a ambulância. A sobrevivência não estava nos planos porque o nojo de si, de repente, veio à tona. Não queria dar ao espetáculo o grau de tentativa de suicídio. Ele estava ali esperando qualquer coisa, menos a realidade. Enfim, não queria ser mais um a observar a cena. Mas foi.

Vinte dias no hospital público – um suplício bem maior do que sua sala infectada vermes. Sim, os vermes chegaram para completar o serviço. Viscosos e dispostos, não contavam com a intervenção de terceiros. A enfermaria coletiva era pior e o fato de estar ali, diante de doentes comuns, era constrangedor. Caso tivesse morrido as pessoas seriam mais compassivas. Sentiriam asco, claro, mas não sentiriam tanta pena. A morte encerraria o processo, o local seria limpo e vida – a dos outros – seguiria normalmente.

Alternativa provisória: estado de coma. Talvez aqueles pensamentos prosseguissem e poderia ser uma delícia desfrutar os momentos em que a imaginação se separa do corpo, sem nenhuma conotação religiosa, apenas uma ocorrência neurológica. Outra vantagem, também momentânea de estar inteiramente alheio, noutra: a saída. Sentiria medo, vergonha e preguiça. Depois da alta hospitalar teria que correr dos credores, procurar uma casa, tentar um emprego. Foi ai que os sintomas do velho Transtorno Explosivo Intermitente, o TEI, voltaram com força total.


- Continua no próximo capítulo?
- Acho que não, né? O cara começou a andar em círculos. A história está num impasse.
- Só que não pode terminar assim...
- Ah, pode. Vai fazer o que? Ele morre? Não. Se dá bem na vida? De jeito nenhum. A volta à sala seria óbvia, mais circular ainda. Além disso, a sala já está limpa, lembra?
- Meio manjado, também acho.
- Tem mais: saídas absurdas nem pensar.
- Deixa assim, então?
- Deixa. Vê se esquematiza melhor nas próximas histórias...
- O diálogo também é meio fraco.
- Que diálogo.
- Este nosso, aqui, agora.



Lula Falcão

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