quinta-feira, 14 de julho de 2011

No recesso do lar

Andava nu pela casa, olhava o lixo ao redor, recolhia-se ao que restava da cama. De novo em pé, nova perambulação pela sala, uma conta surge por baixo da porta, uma barata passeia sobre a caixa redonda de pizza podre. Ele vai até a cozinha, uma montanha de pratos para lavar, panos de chão fedorentos, jornais velhos por todo canto, telefone mudo, computador quebrado, sem cigarros, os sons da rua – os mesmos que ouvia na infância, durante gripes-sarampo-catapora. Tinha uma roupa no armário ainda em condições de uso. Saiu com ela para uma volta no quarteirão, pensando o tempo todo, falando um pouco sozinho, esboçando planos pela metade, como sair dessa? Encontrou uma solução precária: vender um rim.

Só que não dá para negociar um órgão do corpo sem o mínimo de organização, capital inicial, logística e informação sobre o mercado. A primeira tarefa seria arrumar a casa. Mas não há material de limpeza e a água foi cortada. Todos os bolsos foram revirados a procura de centavos. Nada. Poderia vender um único bem valioso – “Aves Canoras do Brasil”. Livro esmerado, capa dura, 300 páginas, 1989. Ficaria bem numa residência com o mínimo de pendor ornitológico. As avezinhas são bonitas, o sebo pode querer, por dez reais, no mínimo.

O grande objetivo era comprar sacos pretos de lixo, dos grandes, sumir com tudo aquilo. Depois: molhar um pano com água, em qualquer água por ai, e dar uma passada geral no chão. Falta uma vassoura. Como foi feita a primeira vassoura? Leu em algum lugar que poderia improvisá-la. Os índios já conheciam o instrumento antes da chegada dos portugueses. Eram feitas com Malváceas, Sida acuta, Burm, escrofulariáceas e Rubiáceas. Melhor esquecer. Improvisaria uma vassoura com tiras de jornais velhos e um cabo de guarda-chuva.

O maior investimento, no entanto, seria em Internet. Lan House. Três reais a hora. Naquele período poderia obter informações suficientes sobre nefrologia, transplantes e, finalmente, venda e compra de rins no mercado negro. Com cinco reais no bolso, resultado da venda de “Aves Canoras do Brasil”, desistiu da limpeza da casa e foi direto ao ponto, a Internet. Num site, o professor Ninos P. Malek, da San Jose State University, afirma: “Se o governo federal quer realmente amenizar a atual crise de escassez de órgãos, deveria, então, remover as barreiras à compra e venda organizada”. Só que ele queria vender no mercado nacional, as duas partes sairiam ganhando: “alguém quer um rim; eu quero dinheiro”.

Uma idéia: ante-salas de sessões de hemodiálises. Foi. Não poderia simplesmente chegar e anunciar seu produto. “Vendo rim”. Tentou puxar conversa transversa com candidatos a transplantes, mas não chegava ao nó da questão, ao negócio. Tinha medo, vergonha e era ruim de comércio.

Voltou para casa. Uma hora depois estava deitado na sala imunda. Nu. À espera.

@_lulafalcao

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