sábado, 16 de julho de 2011

A Lacraia

Tinha tudo nas mãos: boa história, personagens densos e um narrador de primeira. Ele mesmo. Faltava, no entanto, uma fonte de renda que não exigisse expediente tão puxado. Lembrava sempre que Machado e Drummond tinham merecidos empregos públicos. No seu caso, ao contrário, tratava-se de uma empresa de alta tecnologia, cheia de exigências, gráficos, planilhas, atualizações permanentes, estudos de mercado e outras aperreações que tomam o dia e a vida do sujeito. Havia ainda chefes. O dele, então, era quase o site da empresa, com sua missão e portfólio, nomes dos clientes, característica de cada um deles, produtos, serviços, vendas e vendas. Nada além disso. Um paletó e gravata.

Boa desculpa para não escrever o que tinha em mente porque as horas fora da empresa eram gastas com a mulher dos seus sonhos, uma lacraia inculta, consumidora voraz de seu tempo e dinheiro. Mulher que para em vitrine, pergunta “não é lindo, esse?”, depois entra na loja, experimenta vários e finalmente dá uma patada de respeito no saldo bancário do casal. E ele, nada, pagando, ouvindo detalhes sobre tamanhos e cores, concordando que o preço foi muito bom em se tratando de uma calça com aquelas qualidades e marca.

Seus poucos momentos para a escrita ficavam restrito ao banheiro, nas madrugadas. Ali rascunhava num caderninho as idéias sobre o romance e sobre ela, a selvagem na cama, a mulher que parecia ser parte de seu corpo, como um pulmão, mas que roubava seu sonho de tornar-se escritor. A dama do segundo expediente.

A lacraia – designação íntima dele – possuía alguma coisa que não podia ser perdida: o corpo, o olhar, o cheiro e a aguda inteligência para perceber o que poderia deixá-lo de quatro a qualquer momento. Talvez algo mais sutil. De resto, ela ouvia com desdém seus comentários sobre literatura, embora nunca se esquecesse de perguntar como foi no trabalho. Ele: “o de sempre”.

A vontade era largar tudo. O emprego e a mulher. Raciocinava que se abandonasse o trabalho também perderia a lacraia. Não seria necessário tomar as duas providências ao mesmo tempo. Deixaria que o conflito se armasse sozinho, ancorado na falta de dinheiro e no fervor consumista da amante. Foi o que fez.

Ao voltar para casa, numa sexta-feira, anunciou o pedido de demissão. O chefe havia recebido a notícia com a frieza de sempre. Ela, inesperadamente calma, só quis saber a razão. “Enchi o saco de tudo”, disse. “O que vamos fazer?”, perguntou a lacraia, já menos lacraia e com jeitinho de personagem de filme francês. Ele: “vou escrever o livro”, informou, cabisbaixo. Esperava que a ex-lacraia dissesse que “dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo, meu bem”. Não. Ela parecia procurar uma solução no ar, mas sem desespero, sem engolir a seco, sem esboçar qualquer desses gestos que ele costumava usar em seus diálogos manuscritos no banheiro quando se referia à lacraia do livro que um dia iria escrever. Não ficou pasma. Apenas disse: “a gente dá um jeito”.

Com aposentadoriazinha privada, o tempo passou sem maiores sustos. Só que, aos poucos, ele começou a sentir falta da mulher consumista de antes, da perua de antes, das lojas, dos sapatos, das sacolas, do rosto contente da mulher ao entrar no shopping; do jeito sensual dela ao retirar o cartão de crédito da bolsa. A mulher mudou, adaptou-se à nova vida do casal, passou a ler como nunca, tomou gosto por livrarias e até esteve com ele na Flip. E o livro não saiu.

Não saiu o dele. Saiu o dela. Um belo romance sobre os conflitos de um casal, elogiadíssimo pela crítica – e dedicado ao marido.


@_lulafalcao

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