quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Aquela gente

É sempre assim. No dia 28 dezembro eles vão para o mesmo condomínio na praia dispostos a comemorar o fim do ano com uma bebedeira de quatro dias, numa epopéia etílica sem precedentes na história do litoral brasileiro. Não há intervalo para ressacas. Bebe-se de manhã à noite, entra-se na madrugada e quando o sol aparece já se ouve o estalo de uma latinha de cerveja sendo aberta. Logo em seguida, uns poucos vão ao mar, para beber, enquanto a maioria fica bebendo ali mesmo, em acaloradas discussões sobre o porre do dia anterior e o planejamento do porre do dia seguinte. No condomínio, o álcool é o meio e a mensagem.

A embriaguez líquida e certa, para usar um lugar comum, dissolve quase tudo, de reputações a credos, pois vem acompanhada de outra categoria de entretenimento, a fofoca. Só que falar pelas costas não funciona. As casas são contíguas e há agentes duplos em quantidade suficiente para fazer os fatos e versões circularem numa velocidade próxima a da luz. Então, depois que todos falam mal de todos começa a fase em que a maledicência e seus derivados passam a ser produzidos a partir de ocorrências do próprio condomínio. A maior parte do noticiário local é sobre sexo (quem comeu quem), mas o álcool sempre está em cena por razões óbvias. Como alguém comeu alguém naquele estado deplorável em que estava ontem à noite? Nas mesas dos quintais e jardins, tais comentários costumam também rolar na presença dos envolvidos que, pelas regras, não devem esboçar reação, mas esperar sua vez de ciscar sobre a próxima vítima.

Nesse meio tempo, já se formaram grupos de vizinhos, uns contra os outros, como se fosse uma disputa esportiva ou uma forma de recreação. Tudo, naturalmente, alimentado por quantidades colossais de cerveja (manhã), wisque (tarde) e tudo (noite). Por tudo, leia-se TUDO. Há facções mais radicais, como a da casa 62, cujos moradores simplesmente cortaram o sono de suas preocupações. Os quatro dias passam como um bloco inteiro, noites e dias emendados, olhos arregalados e muita esperança para o ano que vai chegar e se não chegar, foda-se.


Mesmo bêbadas, as pessoas são civilizadas. Existe fair play na hora de engolir sapos e mesmo quando o sujeito escuta que sua mulher ainda não voltou de uma festa nas redondezas – saiu ontem à noite e já são duas da tarde -, reage com tiradas de bom humor, em geral auto-depreciativas, e todos se divertem. O que chateia são as questões de ordem prática, como arrumar casas, cuidar de crianças, fazer compras e administrar empregadas evangélicas. Casos mais graves - sumiço de copos, cadeiras e até de feijoadas - são tratados de maneira sumária, atribuindo o crime ao pessoal da casa 62. Além de não dormir, essa espécie só se alimenta na madrugada, em furtivas caçadas nas cozinhas adjacentes. Coisas do mundo animal.

Outra mania interna é o questionamento constante sobre a saúde mental de determinados condôminos. As mulheres são mais afeitas a observações nessa linha, umas acusando outras de serem loucas varridas, e sempre pontuando o diagnóstico com afirmações do tipo “não é possível que isso seja só álcool”. A Caras não se interessaria sobre esse ti-ti-ti de anônimos, mas certamente a Revista Brasileira de Psicanálise teria o que fazer por lá.

A lavagem coletiva de almas é um processo de amigos. Estranhos eventualmente convidados, devem se restringir a questões gerais, como a crise européia e a previsão do tempo, porque suas vidas não são do interesse de ninguém, suas piadas não têm graça e suas intervenções sobre o comportamento de outros são publicamente reprovadas ou tratadas com gélida indiferença.

A festa diuturna se encaminha para seu auge – a passagem do ano numa praia próxima -, mas até a chegada do réveillon a exposição pública da vida privada já estará exaurida e o ápice termina virando anticlímax. Finalmente bate a ressaca sobre os mais fracos, embora ainda existam dois dias pela frente – 1º e 2 de janeiro. A turma da 62, no entanto, continua a mil, eventualmente rastejando entre corpos já abatidos pelo sono.

Apesar do clima de juízo final, poucas amizades são abaladas pela temporada de catarse ébria. No máximo alguns poucos dirão: “nunca mais volto aqui”. Mas é mentira. Ainda neste ano, estarão de volta, no dia 28 de dezembro, cheios de planos para 2013, muitas caixas de vodka e um estoque de latinhas capaz de influir no market share das cervejarias.

4 comentários:

teta disse...

Amei! Parabéns, mais uma vez.

Lula Falcão disse...

Teta, já viu seu blog aqui no lado direito? (outros sites)

Monica Lapa disse...

Aquela gente é mais que uma turma; é uma equipe com regras mais rígidas de ingresso que a maçonaria. Não é fácil fazer parte da equipe. São precisos anos de embriaguêz, alguma inteligência e esperteza para sobrevivência na selva.
Quem sobreviveu ainda verá muitos carnavais e reveillons numa praia cult do litoral de Pernambuco.

Gabriela Dalia disse...

Gostei do "alguma inteligência",porque embriaguez,doidice e burrice são um perigo juntos né?
Genial Lula! Você fez aquela gente ter algum sentido.
Qual foi mesmo? hehe

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