sexta-feira, 12 de março de 2010

Esquerdinha




Novembro de 1969. Pelé faz o seu milésimo gol e a Apollo 12 pousa na Lua. Em Natal, província ensolarada de 250 mil habitantes, o apocalipse resume-se à grande área de um estádio acanhado, superlotado com seis mil pessoas.


Gramado irregular com notáveis calvícies de terra batida, arquibancada de madeira dos anos 20, o Juvenal Lamartine consagra e amaldiçoa um homem de 26 anos, em lances capitais e imperdoáveis pela paixão que transfigurava a cidade naqueles dias de guerra entre ABC e América.


A Ditadura jogava pesado e baixo. O “treinador” de verdade atendia por Hildebrando Duque Estrada, General do Exército e comandante da Guarnição local. Duque Estrada, como os beques-de-roça da repressão, conspirou, abusou e forçou a cassação do prefeito Agnelo Alves. A delação e a adulação ao poder das baionetas tabelavam em indistintas classes sociais.


Camisa 10 do ABC, boa-pinta, cabeleira à James Dean, driblador insinuante, Esquerdinha poderia ter decidido um dos campeonatos mais sossegados da história do clube. Paulista da capital, filho de descendente de calabrês e mãe de sangue do Líbano, Sérgio Depércia revolucionara a cidade sem a truculência de Duque Estrada. Era habilidade e polêmica, malabarismo e rebeldia que o distinguiam dos boleiros semi-amadores.


Contam as (inúmeras) versões fantasiosas: Bastava um empate no terceiro jogo com o América e o ABC (que vencera o primeiro(3x0) e empatara sem gols o segundo ), seria campeão. O jogo estava 0x0 quando aí a sombra das lendas recai sobre a história. Esquerdinha teria passado por três beques do adversário em fintas progressivas, desconcertantes, canhota colada na bola, em sintonia com o cérebro cientista e a cabeça erguida e soberana.


Sozinho com o goleiro, teria preferido driblá-lo a chutar e fazer o gol. A facilidade com que o deixou no chão soltou o grito da “frasqueira”, como é conhecida a torcida do ABC, berro de gol explodindo. Pior:Feito piagas do literário terror sertanejo, remanescentes do JL sustentam que Esquerdinha achou pouco e resolveu voltar para desafiar novamente o goleiro Franz,que, então, tomou-lhe a bola.


Eis a sentença de quem não perdoa Esquerdinha.


A tragédia verdadeiramente jogada sobre o meia-esquerda consumou-se quando, no minuto final, a torcida do ABC festejava o título, acenando para a do América com lenços brancos. Alemão, esforçado atacante, chuta, a bola desvia na defesa e engana o goleiro Floro.


O América faz 1x0, provoca choros convulsivos na massa abecedista e adia a decisão. Ganharia a partida extra por 2x0. O tosco Alemão é homenageado, por verso igualmente limitado, tristeza de rima: “Recebeu de

Talvanes, na maior tranqüilidade, deixou Piaba na rua e Floro na saudade”.


Esquerdinha foi escorraçado. Vilão da derrota, fermentou a ira abecedista ao assinar contrato com o América , levantando suspeitas até hoje mantidas – sem provas – de que vendera-se ao grande rival do ABC.

Em todas as referências, a unanimidade: Genial com a bola no pé esquerdo, gingava mascando chicletes, incendiário galã fora de campo, criador das próprias roupas e sapatos, sedutor implacável. Vespa em corações femininos. Suspiro de solteiras e (muitas) casadas de Natal.


Janeiro de 2010. Ao telefone, uma voz pausada e grave. Consigo, depois de renitente procura, conversar com o Esquerdinha que eu nunca vi, mas, que de tanto ouvir, transformou-se no mito mais inacessível aos meus faros futebolísticos. Eu me antecipo, como os volantes que tentavam marcá-lo. Do outro lado da linha, o consultor imobiliário Sérgio Depércia, hoje com 66 anos, morando numa casa de condomínio fechado na Granja Viana em Cotia(SP). Ele mostra surpresa e receptividade.


Pergunta como foi localizado e por que ainda motivava uma notícia. Explico que saí pescando vestígios do sobrenome Depércia até encontrar reportagens sobre um certo Fabiano, o Caju,designer de motos potentes, “customizador”, assim definido por clientes como o famoso estilista Ricardo Almeida.


Consegui com um colega jornalista, o celular de Caju que me atendeu com impressionante presteza, também espantado com a curiosidade sobre o pai, de quem herdou o gosto pela moda algo transgressora. “Meu pai desenhava suas próprias roupas, herdei esse lado dele,” me conta Caju.


Na linha de novo com Sérgio Depércia, ele demonstra a antevisão, privilégio do exuberante meia que foi na década de 60. “Eu fiquei marcado por aqueles lances contra o América. Começaram a dizer que eu tinha me vendido”, domina o diálogo, antes da pergunta recorrente.


“O fato é que eu não me vendi. Fui displicente, inconseqüente, como eu sempre fui quando jogava bola. Não tinha a menor noção do que minha capacidade poderia significar pra mim, não agi com profissionalismo, aliás, profissionalismo não passava pela minha cabeça naquele tempo. Poderia ter me dado muito bem se tivesse consciência do meu potencial.”


Faz uma pausa antes de relembrar os lances cruciais do dia 23 de novembro de 1969. Nega com impaciência que tenha voltado para driblar de novo a defesa do América. “Isso daí (expressão tipicamente paulistana) é folclore, é lenda mesmo.”


O que aconteceu, segundo Esquerdinha, na grande área que dava para os fundos do estádio e para o morro de Mãe Luíza, foi o seguinte: “Eu realmente driblei a defesa inteira ou quase inteira, não me recordo. Mas diante do goleiro, chutei pra fora. Ele estava completamente batido no lance. Realmente perdi um gol feito. Mas essa de voltar e driblar novamente não existe. Ali mesmo eu teria sido massacrado”.


Esquerdinha aprendeu que voltar ao passado não é um bom hábito. Há cicatrizes como a morte da primeira mulher, Elizabeth, no parto da filha Marialice, hoje com 35 anos. “Sempre olhei adiante. O que passou, principalmente de ruim, eu tento esquecer”.


Mas não a ponto de passar a borracha na memória do segundo momento em que poderia ter marcado o gol e feito o ABC Campeão em 69. “Esse lance é que foi incrível, eu não consigo explicar. Eu simplesmente caí sozinho,ninguém encostou em mim nem eu tropecei em nada, eu caí no chão com a bola passando na minha frente, gol escancarado. Hoje eu digo que o segundo lance aconteceu porque eu ainda estava abalado com a primeira falha. Talvez até de forma inconsciente o primeiro gol perdido me fez perder o segundo”.


Ex-presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte(FIERN), Abelírio Rocha, o Bira Rocha, comandava o futebol do ABC em 69, com José Prudêncio Sobrinho(Pruda), o cartola-arquibaldo, falecido há oito anos, e Severo Câmara.


Bira Rocha usa da implacável e conhecida franqueza para descrever Esquerdinha. “Um craque tão brilhante quanto irresponsável”. Os 40 anos passados não tiram de Bira Rocha a autoridade de quem parece estar de novo nos treinos de Morro Branco e no calor do JL.


“Esquerdinha era diferenciado, um craque, abusava do drible a mais. Também era diferenciado fora de campo, um jogador elegante no trato pessoal e nas roupas que usava”. No primeiro treino, chegado do CRB de Maceió, enlouqueceu a torcida.Começava a rivalidade surda com Alberi, já a estrela intocável do clube.


Bira Rocha não dá relevância ao especulado suborno de Esquerdinha. Surpreso ao saber do paradeiro do craque, atribui os erros fatais em campo à irreverência do jogador: “O fato é que, pelo estilo de vida dele, ele não era benquisto pelos colegas. Havia um ódio guardado que explodiu com o lance dos dribles nos zagueiros e do gol perdido naquele jogo com o América. Foi uma jogada de craque, decidida pela sua conhecida irresponsabilidade. Então a situação dele no ABC ficou insustentável”.


No auge dos shows no Juvenal Lamartine, Esquerdinha controlou as ações fora dos portões do estádio. Apresentado pelo cronista social Jota Epifânio, da Tribuna do Norte, torcedor do ABC, passou a freqüentar o ateliê do alfaiate Xikinho,s no centro de Natal.


Desenhava suas roupas, justas e extravagantes, que usava com botas de salto alto. Variava para ternos bem cortados, jaquetas ,camisas coladas no tórax e calças boca-sino berrantes.Além dos sapatos Motinha, febre no Sudeste.


“Esquerdinha tinha estilo próprio. Vestia-se muito bem, era inteligente, agitou o mulherio de Natal. As dondocas colavam nele. Até ligavam pra cá (a alfaiataria) querendo saber se ele vinha e a que horas vinha”, diverte-se Francisco Medeiros, o Xikinho,s, 70 anos, tesoura que há décadas corta e deixa sob medida a vestimenta de políticos, juristas e empresários locais. “Digo com certeza: Esquerdinha foi o responsável pelo sucesso do meu trabalho.”


Enquanto os colegas preferiam bares comuns ou festejavam suas vitórias nos cabarés da Ribeira, Esquerdinha circulava com desenvoltura pela Bambelô, boate do Hotel Internacional dos Reis Magos, pelo Iate Clube e pela Palhoça, reduto de intelectuais e boêmios vizinho ao antigo Cinema Rio Grande, na Avenida Deodoro.

Esquerdinha responsabiliza a própria rebeldia por tamanha polêmica em torno dele. “Eu freqüentava, sempre convidado, os melhores lugares de Natal. Gostava de boa música: Havia a Jovem Guarda, Caetano e Gil surgiam com o Tropicalismo. Sempre soube me portar porque discutia todos os assuntos. Ficava à vontade em qualquer lugar, com pessoas simples ou numa festa chique no Iate Clube. E discutindo música e ouvindo discussões políticas e intelectuais na Palhoça até altas horas da noite”.


Sutil, ele critica a boleirada daquele tempo: “Alguns jogadores, não só da minha equipe, mas do América, que era o time da elite, elite que não abria as portas para eles, não gostavam de mim. Eu nunca me magoei com isso, só achei injusto que alguns tenham espalhado essa história de que eu estava vendido. Nisso, em parte, ABC e América ficaram unidos”.


Capitão e Hércules do ABC em 1969, Osvaldo Carneiro, o Piaba, dominava, a botinadas, a chamada zona-do-agrião, assim batizada a grande área pelo jornalista João Saldanha. Piaba, 72 anos, guarda a estampa de xerife e prefeito informal das Rocas, celeiro praiano dos antigos craques de Natal. É a antítese física e emocional de Esquerdinha.


A derrota para o América o fez largar o ABC onde começara nos infantis. Na varanda de sua casa,repleta de filhos e netos, mareja os olhos ao lembrar do lance que poderia ter dado o título. “Esquerdinha não podia ter feito aquilo. Não vou dizer se houve safadeza ou não porque não provo. Ele era um craque. Num drible, deixou no chão Franz(o goleiro), Cláudio e Lolô(zagueiros). Só ele e a trave. Chutou pra fora e nós perdemos. E ninguém lembra de quem perde. Nenhum derrotado merece nada”, reclama Piaba, pescador inveterado e servidor federal aposentado.


Esquerdinha jogou sua última partida em Natal na derrota por 2x0, que selou o título do América em partida extra. Discutiu o tempo inteiro com o árbitro Airton Vieira de Morais, O Sansão, da antiga CBD e da Fifa, trazido especialmente para “O jogo do ano”.


Sua postura custou caro. Esquerdinha não vestiu a camisa americana, vencido pelo massacre na imprensa e na torcida.Resolveu voltar a Recife. Treinou no Náutico e encerrou a carreira aos 27 anos, em 1970, trajetória de nômade.


Peladeiro do Bairro do Brás, foi aos juvenis do São Paulo(SP), contemporâneo do zagueiro Roberto Dias e desembarcou no Central de Caruarú(PE), onde manteve tórrido romance com Tâmara, musa da casa noturna Cacareco.Um caso rumoroso, descrito com picardia pelo escritor pernambucano Rodolfo Vasconcellos em seu blog.


Esquerdinha em errática seqüência: Santa Cruz(PE), Portuguesa Santista(SP), testes no Racing(Argentina) e Nacional(Uruguai), Tuna Luso(PA), América(PE), CRB(AL) até vir ao ABC.


Chuteiras penduradas, viveu em Recife, montando uma fábrica de sapatos.Casou com Elizabeth Nascimento. Em 1971, foi pai de Fabiano Depércia, o designer Caju, formado em Educação Física.


Em 17 de novembro de 1974, a tragédia pessoal: Elizabeth morre no parto da filha Marialice, que sobreviveu. Esquerdinha reconstruiu sua vida com a atual mulher, Nádja Gonçalves Pozzi Depércia. Teve mais dois filhos: Tárcio e Daniela Depércia. Assiste jogos do Palmeiras,seu time de coração. Trabalha em casa, no ramo imobiliário. “Não saio para vender ou mostrar imóveis. Tenho muitos amigos, que me procuram e eu os ajudo”.

Esquerdinha viajou a Recife em 2007 e passou de relance por Natal. Incógnito. Encantou-se com o progresso e a beleza da cidade. “É um espetáculo. Em Ponta Negra, no meu tempo, só se chegava de Cavalo ou de jipe”.


Não procurou nenhum ex-companheiro.


Gostaria de ter revisto um amigo que não jogou com ele: Marinho Chagas, que, em 1969, tinha sido contratado ao Riachuelo e não pôde ser inscrito no estadual. “Morávamos na concentração em Morro Branco, eu e Marinho.Ele um garoto ainda. Um gênio de simplicidade e futebol fabuloso. Insisti com Prudêncio que ele tinha bola pra jogar em qualquer lugar. ”


E encerra como se, por milagre, voltasse a Natal de 1969, legítimo imperador do Grandre Ponto: “Sempre fui diferente. Aí mora a diferença. Quem é igual se acomoda e não vive”.


Fantasmas de um teatro de arena


A elite cultural e os seus intérpretes menos tolerantes, jogaram sob os escombros da história de Natal um dos seus personagens mais instigantes: O estádio Juvenal Lamartine, teatro de arena da cidade sem indícios de metrópole.


Cresci no Castelão, o gigantesco sucessor do campinho relegado a subúrbio do futebol.

Morava a três quadras do renegado, esquecido teatrinho da bola, submetido a campeonatos classe Z, como uma certa Copa Arizona. Ao entrar (no JL decadente), ouvia sussurros próprios à curiosidade de menino.

Invejava os bêbados que por ali passavam. E que de tantos gênios falavam. Pareciam deliberar sobre fantasmas zombeteiros flutuando em meus ombros de ouvinte.


O passado, que para muitos é estorvo, como resgate é um prazer. É um dever do ofício escrevinhador. Sem ele( o antes), ninguém mentia, inventava ou aumentava.


Os bêbados do portão principal com uma enferrujada e teimosa roleta,relembravam dos grandes ídolos até metade de 60. Daquela faixa de tempo, Só Alberi, fruto do mar do Pina(Recife). Alberi foi o Deus do Juvenal Lamartine. Sua imagem e semelhança. Jorginho, predecessor, foi o milagre antes do Deus.

Quadrilátero o campo irregular, Esquerdinha fez dele, seu latifúndio.


Aí abusou da massa. Achou que podia ser showman. Passou, no centésimo da ira das gargantas sobrenaturais, de ídolo a culpado, de cracão a desertor.


Por Rubens Lemos Filho


Matéria publicada na revista Palumbo, de Natal.

Fotos: Patrícia Cruz (São Paulo), Ivanízio Ramos (Natal)

Um comentário:

Bastidores disse...

Caro Lula. Muito rico em informações sobre Esquerdinha esse texto do Rubens. Teria que agradecer-lhe pela citação sobre mim e meu blog. O meu texto sobre Tâmara, a Rainha do Cacareco >http://rodolfovasconcellos.blogspot.com/2006/07/tmara-rainha-do-cacareco.html< vai virar um filme longa metragem. Seria muito bom mais informações. Meu e-mail é: >bodeguerodez@hotmail.com< Grande abraço

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