domingo, 12 de maio de 2013

Um bauruzinho entre a vida e a morte



Pois estou aqui parado, sem crédito para o celular, sem dinheiro para a passagem, sem um tostão para um bauruzinho de cinco reais. Almoço bauruzinho com Coca-Cola há muitos meses. Nem isso, hoje. O mais complicado é que não vivo entre miseráveis, mas no seio desta classe média tão cheia de exigências e padrões. Passo longe da mesa daquele bar, ali na frente, perto da farmácia, onde meus amigos estão sentados, tomando cerveja. Cansei de dizer “estou sem grana”; eles se cansaram de dizer “Ok, a gente paga”.

Tem pessoas que se acostumam a tais situações. Eu me revolto, mas só por dentro, não culpo a política do governo. Fico só naquela: por que esse desgraçado incompetente ganha uma fortuna e eu estou na merda? Não é inveja. Fiz faculdade, já tive um carro e viajei pelo mundo. Um dia deu tudo errado e dias errados se repetem até hoje. Tento. Mandei meu currículo para diversos lugares. Não há vagas. O emprego cresce no País e eu diminuo. Nem me lembro do último filme que vi no cinema. Também não culpo Deus. Nem acredito em Deus. Minha vizinha disse que é isso. Quem não acredita se fode. Aliás, na semana que vem não haverá mais vizinha – estou sendo despejado.

Por enquanto, só pinga algum quando aparece um trabalho eventual, free-lance, faço quase tudo, mas minha última especialidade é escrever teses de mestrado para filhos da puta que vão se dar bem na vida. Fico pensando: o cara vai ganhar o emprego que seria meu. O texto é meu, as ideias são minhas e até a encadernação é por minha conta. Tem ainda uma consultoria básica. Às vezes, o sujeito quer uma tese sobre a influência de X sobre Y e digo que é o contrário e ele aceita. Não pagam por isso.

Já havia passado por problemas financeiros, mas passar fome é demais. Nunca imaginei chegar a este ponto até cavoucar os bolsos, não encontrar nem moedas e engolir o seco como almoço. Perguntam se tenho família. Ora, tenho, muita gente, mas cada um está preocupado com seus próprios problemas, sempre maiores do que o meu. Pelo menos é assim quando ia pedir mais cem emprestados à minha tia, planejando arrodeá-la com elogios para depois dar o bote. Não funciona muito. Quando me vê, ela já começa a contar miséria e dar conselhos. “Por que você não faz um concurso?”, sugere titia. “Não quero ser funcionário público”, respondo. “Desse jeito, então, fica difícil”, arremata a velha. Sempre.

Na última segunda-feira, saí de casa decidido a resolver meus problemas. Pensei nas opções, mesmo em assaltar um banco, mas sou cheio de pruridos e a alternativa mais em conta seria me matar. Fiz os procedimentos, escolhi os objetos precisos e escrevi o tal bilhete. Muito grande, detalhista ao extremo, mas tinha suas qualidades. Pois morri e no mesmo minuto acordei, no mesmo canto, olhando para o mesmo bar defronte à farmácia e lamentando a falta de dinheiro. Não havia a sensação de ter virado fantasma. A sensação era de ineficácia da morte, nem ela resolveria meus problemas. De fato, ninguém notou que morri, foi rápido, apagão geral, e os comprimidos – tomei quatro cartelas, vencidas – me deixaram ainda mais melancólico e desgostoso com o mundo. O que fazer? Morrer de novo, brincando de eterno retorno, voltando sempre para a porcaria de sempre?

E agora?

Tornei-me um personagem inverossímil, sem muito espaço para manobras, uma vez que movimentos em falso produzem o total desando do texto, e seria prudente dar à minha morte a categoria de desmaio. Não sei ainda. Outro problema é começar com um drama da classe média e terminar nos jardins do Éden. Falta espaço para descrever as coisas do céu e do inferno, ou chupar histórias de Bulgakov, sobre o gato falante que fuma charuto e faz parte da comitiva do diabo.

No fundo, essa mania de metalinguagem é o meu horror. Nem posso morrer, nem comer e as outras saídas são absurdas. Criou-se aqui uma área de estagnação, um beco sem saída, um mato sem cachorro - apenas em nome de uma solução literária sem futuro. Fato e ficção se misturam. Talvez eu seja outro narrador – o primeiro eu matei - ou talvez eu enverede pela história do cara que morre e seus pensamentos ficam gravados num HD externo. Pode ser uma alegoria - "Morrer é mudar de corpo como os atores mudam de roupa" (Plotino)- ou uma história espírita, de reencarnação imediata, um plano de renascimento sem carência. Seja lá o que for, foda-se, não vou exigir muito. Meu estômago está roncando. Agora, só quero um bauruzinho.


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