Pois
estou aqui parado, sem crédito para o celular, sem dinheiro para a
passagem, sem um tostão para um bauruzinho de cinco reais. Almoço
bauruzinho com Coca-Cola há muitos meses. Nem isso, hoje. O mais
complicado é que não vivo entre miseráveis, mas no seio desta
classe média tão cheia de exigências e padrões. Passo longe da
mesa daquele bar, ali na frente, perto da farmácia, onde meus
amigos estão sentados, tomando cerveja. Cansei de dizer “estou sem
grana”; eles se cansaram de dizer “Ok, a gente paga”.
Tem
pessoas que se acostumam a tais situações. Eu me revolto, mas só
por dentro, não culpo a política do governo. Fico só naquela: por
que esse desgraçado incompetente ganha uma fortuna e eu estou na
merda? Não é inveja. Fiz faculdade, já tive um carro e viajei pelo
mundo. Um dia deu tudo errado e dias errados se repetem até hoje.
Tento. Mandei meu currículo para diversos lugares. Não há vagas. O
emprego cresce no País e eu diminuo. Nem me lembro do último filme
que vi no cinema. Também não culpo Deus. Nem acredito em Deus.
Minha vizinha disse que é isso. Quem não acredita se fode. Aliás,
na semana que vem não haverá mais vizinha – estou sendo
despejado.
Por
enquanto, só pinga algum quando aparece um trabalho eventual,
free-lance, faço quase tudo, mas minha última especialidade é
escrever teses de mestrado para filhos da puta que vão se dar bem na
vida. Fico pensando: o cara vai ganhar o emprego que seria meu. O
texto é meu, as ideias são minhas e até a encadernação é por
minha conta. Tem ainda uma consultoria básica. Às vezes, o sujeito
quer uma tese sobre a influência de X sobre Y e digo que é o
contrário e ele aceita. Não pagam por isso.
Já
havia passado por problemas financeiros, mas passar fome é demais.
Nunca imaginei chegar a este ponto até cavoucar
os bolsos, não encontrar nem moedas e engolir o seco como almoço.
Perguntam se tenho família. Ora, tenho, muita gente, mas cada um
está preocupado com seus próprios problemas, sempre maiores do que
o meu. Pelo menos é assim quando ia pedir mais cem emprestados à
minha tia, planejando arrodeá-la com elogios para depois dar o
bote. Não funciona muito. Quando me vê, ela já começa a contar
miséria e dar conselhos. “Por que você não faz um concurso?”,
sugere titia. “Não quero ser funcionário público”, respondo.
“Desse jeito, então, fica difícil”, arremata a velha. Sempre.
Na
última segunda-feira, saí de casa decidido a resolver meus
problemas. Pensei nas opções, mesmo em assaltar um banco, mas sou
cheio de pruridos e a alternativa mais em conta seria me matar. Fiz
os procedimentos, escolhi os objetos precisos e escrevi o tal
bilhete. Muito grande, detalhista ao extremo, mas tinha suas
qualidades. Pois morri e no mesmo minuto acordei, no mesmo canto,
olhando para o mesmo bar defronte à farmácia e lamentando a falta
de dinheiro. Não havia a sensação de ter virado fantasma. A
sensação era de ineficácia da morte, nem ela resolveria meus
problemas. De fato, ninguém notou que morri, foi rápido, apagão
geral, e os comprimidos – tomei quatro cartelas, vencidas – me
deixaram ainda mais melancólico e desgostoso com o mundo. O que
fazer? Morrer de novo, brincando de eterno retorno, voltando sempre
para a porcaria de sempre?
E
agora?
Tornei-me
um personagem inverossímil, sem muito espaço para manobras, uma vez
que movimentos em falso produzem o total desando do texto, e seria
prudente dar à minha morte a categoria de desmaio. Não sei ainda.
Outro problema é começar com um drama da classe média e terminar
nos jardins do Éden. Falta espaço para descrever as coisas do céu
e do inferno, ou chupar histórias de Bulgakov, sobre o gato falante
que fuma charuto e faz parte da comitiva do diabo.
No
fundo, essa mania de metalinguagem é o meu horror. Nem posso morrer,
nem comer e as outras saídas são absurdas. Criou-se aqui uma área
de estagnação, um beco sem saída, um mato sem cachorro - apenas
em nome de uma solução literária sem futuro. Fato e ficção se
misturam. Talvez eu seja outro narrador – o primeiro eu matei - ou
talvez eu enverede pela história do cara que morre e seus
pensamentos ficam gravados num HD externo. Pode ser uma alegoria -
"Morrer é mudar de corpo como os atores mudam de roupa"
(Plotino)- ou uma história espírita, de reencarnação imediata, um
plano de renascimento sem carência. Seja lá o que for, foda-se, não
vou exigir muito. Meu estômago está roncando. Agora, só quero um
bauruzinho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário