Cena: uma velha sentada no tamborete. A
filha ouve. Câmera ligada.
Local: Sertão de Pernambuco
Raspe o tacho, minha filha, a hora chegou.
Quase nada para seguir adiante e por isso ficaremos aqui, raspando o tacho,
raspando as últimas camadas orgânicas, os últimos grãos agarrados no fundo, a
gosma para garantir a vida dessas famílias. É um jeito de dizer, mas é verdade,
no fim é assim. A história se repete todos os anos, quando a chuva deixa de
cair. Nossa última plantação não era de comida. O que deu, o povo fumou, não
tinha pra vender. Agricultura de subsistência. Hoje é seca, fome e polícia.
Três problemas. Estamos com o que resta. Quase nada para vender e sem dinheiro
para comprar. Há comida para um mês, feijão e farinha, e vez por outra aparece
uma alma caridosa, freguês antigo, e solta uns reais, com pena e com saudade do
mato. Gente que vinha comprar comigo, gostava do produto, elogiava o cheiro e o
sabor, especialmente o efeito. Muitos nem esperavam a estrada e testavam a
qualidade debaixo da árvore, olhando as estrelas. Rodavam 800 quilômetros para chegar
ao paraíso. Agora, nada; nenhuma florzinha.
Um enorme esforço perdido.
Ele não conseguia aproveitar as pequenas
delícias da vida, momentos de contemplação, por exemplo, pois sempre queria o
conjunto, o conceito, além de uma medida de satisfação numa escala de um a dez,
como se catalogasse situações apenas para um balanço final, cheio de
interpretações, teorias e, se brincar, até gráficos e tabelas. Anotava tudo,
até ontem, quando ocorreu a tragédia e ele se foi sem conseguir compilar todos
os dados, sem formar uma ideia de quem era, afinal. Um enorme tempo perdido,
mas fosse o contrário, um homem do acaso e sem tais preocupações futuras, daria
no mesmo, como sempre.
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