quinta-feira, 21 de março de 2013

Tempos de seca




Cena: uma velha sentada no tamborete. A filha ouve. Câmera ligada.
Local: Sertão de Pernambuco

Raspe o tacho, minha filha, a hora chegou. Quase nada para seguir adiante e por isso ficaremos aqui, raspando o tacho, raspando as últimas camadas orgânicas, os últimos grãos agarrados no fundo, a gosma para garantir a vida dessas famílias. É um jeito de dizer, mas é verdade, no fim é assim. A história se repete todos os anos, quando a chuva deixa de cair. Nossa última plantação não era de comida. O que deu, o povo fumou, não tinha pra vender. Agricultura de subsistência. Hoje é seca, fome e polícia. Três problemas. Estamos com o que resta. Quase nada para vender e sem dinheiro para comprar. Há comida para um mês, feijão e farinha, e vez por outra aparece uma alma caridosa, freguês antigo, e solta uns reais, com pena e com saudade do mato. Gente que vinha comprar comigo, gostava do produto, elogiava o cheiro e o sabor, especialmente o efeito. Muitos nem esperavam a estrada e testavam a qualidade debaixo da árvore, olhando as estrelas. Rodavam 800 quilômetros para chegar ao paraíso. Agora, nada; nenhuma florzinha.


Um enorme esforço perdido.

Ele não conseguia aproveitar as pequenas delícias da vida, momentos de contemplação, por exemplo, pois sempre queria o conjunto, o conceito, além de uma medida de satisfação numa escala de um a dez, como se catalogasse situações apenas para um balanço final, cheio de interpretações, teorias e, se brincar, até gráficos e tabelas. Anotava tudo, até ontem, quando ocorreu a tragédia e ele se foi sem conseguir compilar todos os dados, sem formar uma ideia de quem era, afinal. Um enorme tempo perdido, mas fosse o contrário, um homem do acaso e sem tais preocupações futuras, daria no mesmo, como sempre. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário