sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Dilemas ideológicos e o amor

Tinha que arrumar uma mulher que não me deixasse vendido ao sistema. Cansei de escrever textos com os quais não concordo – e no capricho. De dia, dou expediente como neoliberal para um líder classista do empresariado; à noite, bato ponto na esquerda, numa revistinha ao estilo realismo socialista. Nos dois casos, preciso demonstrar certo entusiasmo ideológico e, pior, voltar pra casa de ônibus. Há três anos estou nessa bipolaridade mal remunerada e mal resolvida.

Comecei a pensar em mudar de vida depois de seguidos encontros com uma jovem senhora de Higienópolis. Ela encantou-se com meus escritos – sim, tenho um blog – e aos poucos foi se chegando. Descobri que herdou uma fortuna da família e, pelo jeitão, estaria disposta a um mecenato com contrapartida sexual e aconchegos pertinentes. Estou vendo o custo-benefício dessa história. Pensei: é a chance de me livrar do empresário reaça e da publicação soviética. Poderia chutar o balde e passar a escrever só o que penso, sem melindrar meus patrões e minha consciência, como ocorre agora, pois só trato de cinema e literatura, mesmo assim de forma meio neutra. Nada de política ou filosofia porque suja a relação empregatícia.

Mas tem a questão da canalhice. Não estou apaixonado, não tenho tesão por ela, embora ache agradável ouvir seus elogios sobre minhas tentativas literárias. A voz é boa. O corpo deixa desejar, mas relevo porque também não sou essas coisas. O importante é que não dá a mínima se o sujeito é de direita ou de esquerda. Diz que gosta dos inteligentes e cultos. Enquanto isso, embalo meu dilema: como ou não como?

O fato é que não escondo meu desconforto com os dois empregos, mas ela não pensa assim, jamais pensará. Gostou do que saiu na revista (um texto meio que defendendo a Coréia do Norte) e do blog do empresário, onde detonei o gigantismo do Estado e floreei o empreendedorismo privado. “Você é eclético”, ela falou, manhosa. Não se tratava de ignorância; apenas seu mundo não estava assim dividido, entre direita e esquerda, como já disse, e se estivesse, acredito, os dois lados teriam seus defeitos e qualidades. O regime político ideal, segundo ela pensa, é uma mistura de capitalismo e comunismo, em que pobres levam uma vida decente sem perturbar a paz dos bem nascidos.

Se assim foi resolvida a questão política, pode significar que ela não me quer em seu apartamento de quatro quartos e duas suítes. Prefere me ver nessa confusão. Nada disso. Sempre repete que faço muito bem o meu trabalho, mas mereço coisa melhor e - gostei dessa parte – preciso de tempo para pensar e escrever sobre o que me vier à telha, de preferência um romance. Oferta irrecusável, mesmo dita de forma indireta. O que viria a seguir seria no campo romântico, algo parecido com jogo da conquista, pois a dama necessitava disso para oficializar o negócio.

A estratégia, que envolvia alto grau de cafajestice, começava por deixar de lado aquele papo sobre crise ideológica e criar um auto de bar a propósito de sua exuberante presença neste mundo tão carente de sentido. Disse-lhe que ela surgia como tábua de salvação, última tentativa de um relacionamento, meu bem, meu mal etc e tal, e daí aconteceu, disparei todo meu repertório, que ia ficando adequadamente meloso à medida que ela cedia e acedia e seus olhos brilhavam. A mulher da minha vida, enfim, estava ali, com seu Ap de não-sei-quantos metros quadrados e uma conta bancária suficiente para bancar um escriba desconhecido e agente duplo no campo ideológico.

Não se pode, depois disso, simplesmente organizar a mudança. Há ainda um período de namoro, parte especialmente enjoada, em que fomos a cinemas, jantares e passeios a beira mar. Com imenso sacrifico, dividi as contas. Nesse tempo, mantive minhas atribuições antagônicas, correndo da direita para esquerda e vice-versa, protestando contra o governo num canto e defendendo o mesmo governo no outro. De manhã, conferências empresariais sobre qualidade total e outras merdas; à tarde, discussões intermináveis sobre a crise do capitalismo e outras merdas.

Aquilo era estranho. Não tinha ilusões socialistas, mas ao mesmo tempo detestava aquele discurso descarado e sem culpas em defesa do lucro. E o que é pior? Sacanear suas convicções, por mais frouxas que fossem, ou sacrificar uma mulher no altar do mau-caratismo? Não dormi bem nesse dia nem dormiria nos seguintes. O drama moral me afetava e isso, por um lado, era bom. Mostrava minha capacidade de ter dramas morais.

Então marquei uma conversa aqui por perto. Chega de pegar ônibus. Abri o jogo de maneira escancarada a ponto fazê-la chorar, comovida com minha sinceridade. Parecia até mais apaixonada, e estava de verdade, porque finalmente fomos para o apartamento e ela me surpreendeu com encantos inesperados, o cheiro agradável e petinhos em razoável estado de conservação.

O certo é que a mudança de vida ficou para outro momento. O desfecho foi o seguinte: estamos num namoro, mas cada um em sua casa. Continuo com meus dois empregos aparentemente irreconciliáveis - direita de manhã, esquerda à tarde. Só que agora plenamente ajustados ao pensamento terceira via da amada.

2 comentários:

Cristina Lopes disse...

Como sempre amei o texto. Eita dom danado esse da escrita!
O texto de hoje? supimpa.
Bjs

Luciene Malta disse...

Oi Lula!
Enfim nem precisou do cinema pra resolver o dilema. Gostei muito do texto. Beijos! Luciene Malta

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