quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Teoria da dependência



Voltei, depois de muitos anos, para continuar o jogo.  Adélia banca meu final de vida, deixa trocados em cima da mesa, compra os remédios, passa o cartão de crédito no supermercado. Há um preço alto. Diante de todos, ela revela minha situação de pobre coitado, não tem onde cair morto, diz, com risinho de vingança. Os outros ficam sérios por fora, mas riem por dentro. Não sei por que a vingança, se não fiz nada. Talvez seja apenas a necessidade de Adélia em ter alguém por perto para suster e esmagar, morder e assoprar – e mesmo longe, estive por perto, levando sermões pelo telefone. Sempre saía reduzido a nada, como ocorre agora, todos os dias, desde a minha volta.

Não sou de todo inútil. Sirvo para escrever e-mails em inglês. O destinatário é o soldado desconhecido, um cara que Adélia conheceu em Nova York e que deu uns tiros no Afeganistão. Quando voltou da guerra, virou teatrólogo. Um gênio, segundo ela. Nunca o vi, nem em fotos, mas tenho ciúmes e raiva dele. Li sua última peça; é uma bosta. Melhor se continuasse matando afegãos. Mas escrevo, como um castigo, e reescrevo, quando ela pede mais sentimento e tensão. Sou um escravo de sua mente perversa, conforme já me disseram. Você faz tudo que ela manda? Faço até mais. Não por necessidade de algum dinheiro nem pela própria sobrevivência. Faço por vício.

Se ganhasse milhões, de repente, voltaria do mesmo jeito. As compensações estão escondidas em algum lugar, num ponto infinitesimal da cabeça de Adélia, em algum sentimento que não aparece, mas pode ser detectado, como uma partícula. Não sei o que é, mas existe. Talvez seja o momento em que me faço de vítima e entrego inteiramente os pontos; e aí ela chega, com tudo, todas as forças, a Cruz vermelha, a Cavalaria, o pronto socorro, o jantar no restaurante mais caro. O melhor é quando desliza a mão sobre meus cabelos – o máximo que pode fazer em termos de carinho. Desliza a mão suave de cremes importados, e embora diga você não tenho jeito, acalma minha tragédia, reduz meus dias de fracasso a um único instante sem ensaio de desespero.

Então eu durmo, acordo e a batalha recomeça. Já pensei em encerrar essa história ou fugir, mas nessas horas minha alma subalterna à sua se recolhe e decai. Como algo que deve ser assim e assim será, eternamente. Às vezes, quando estamos sozinhos, é ainda mais severa e cruel. Adélia se empenha dia e noite em aniquilar minhas vontades, planos e ideias. Quanto ao desejo, deixa correr, até provoca, mas não o sacia.  Portanto não faz aquelas cenas de dominação só para a plateia. É também algo íntimo, uma necessidade e um estilo. Quem sabe um estilo de loucura que, em essência é o mesmo, o meu e o dela, e sem o qual não haveria como seguirmos em frente.

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