Voltei, depois de
muitos anos, para continuar o jogo.
Adélia banca meu final de vida, deixa trocados em cima da mesa, compra
os remédios, passa o cartão de crédito no supermercado. Há um preço alto.
Diante de todos, ela revela minha situação de pobre coitado, não tem onde cair
morto, diz, com risinho de vingança. Os outros ficam sérios por fora, mas riem
por dentro. Não sei por que a vingança, se não fiz nada. Talvez seja apenas a
necessidade de Adélia em ter alguém por perto para suster e esmagar, morder e
assoprar – e mesmo longe, estive por perto, levando sermões pelo telefone.
Sempre saía reduzido a nada, como ocorre agora, todos os dias, desde a minha
volta.
Não sou de todo
inútil. Sirvo para escrever e-mails em inglês. O destinatário é o soldado desconhecido,
um cara que Adélia conheceu em Nova York e que deu uns tiros no Afeganistão.
Quando voltou da guerra, virou teatrólogo. Um gênio, segundo ela. Nunca o vi,
nem em fotos, mas tenho ciúmes e raiva dele. Li sua última peça; é uma bosta.
Melhor se continuasse matando afegãos. Mas escrevo, como um castigo, e
reescrevo, quando ela pede mais sentimento e tensão. Sou um escravo de sua
mente perversa, conforme já me disseram. Você faz tudo que ela manda? Faço até
mais. Não por necessidade de algum dinheiro nem pela própria sobrevivência.
Faço por vício.
Se ganhasse milhões,
de repente, voltaria do mesmo jeito. As compensações estão escondidas em algum
lugar, num ponto infinitesimal da cabeça de Adélia, em algum sentimento que não
aparece, mas pode ser detectado, como uma partícula. Não sei o que é, mas
existe. Talvez seja o momento em que me faço de vítima e entrego inteiramente
os pontos; e aí ela chega, com tudo, todas as forças, a Cruz vermelha, a
Cavalaria, o pronto socorro, o jantar no restaurante mais caro. O melhor é
quando desliza a mão sobre meus cabelos – o máximo que pode fazer em termos de
carinho. Desliza a mão suave de cremes importados, e embora diga você não tenho
jeito, acalma minha tragédia, reduz meus dias de fracasso a um único instante sem
ensaio de desespero.
Então eu durmo,
acordo e a batalha recomeça. Já pensei em encerrar essa história ou fugir, mas
nessas horas minha alma subalterna à sua se recolhe e decai. Como algo que deve
ser assim e assim será, eternamente. Às vezes, quando estamos sozinhos, é ainda
mais severa e cruel. Adélia se empenha dia e noite em aniquilar minhas
vontades, planos e ideias. Quanto ao desejo, deixa correr, até provoca, mas não
o sacia. Portanto não faz aquelas cenas de
dominação só para a plateia. É também algo íntimo, uma necessidade e um estilo.
Quem sabe um estilo de loucura que, em essência é o mesmo, o meu e o dela, e
sem o qual não haveria como seguirmos em frente.
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