Entre coisas bestas eu gastava o tempo, sozinho, olhando a noite
de uma janela, grilos e sapos, a luz fraca de um gerador diesel, um ou outro
talher batendo no prato. Nunca acontecia nada além disso, mas um dia aconteceu,
com o sequente silêncio dos sapos e o aumento do barulho dos grilos em muitos
decibéis acima da normalidade. De repente aquilo virou um coral e finalmente
apareceram, aos milhões ou bilhões, invadindo as casas da cidadezinha,
inclusive a nossa, e tive o privilégio de acordar meu avô para comunicar, em
tom cinematográfico: eles chegaram.
- Eles quem, menino? – perguntou meu avô, ainda quase dormindo,
mas já correndo os olhos para a arma em cima do guarda-roupa. Eu disse que
tinha muitos grilos lá fora, alguns até aqui dentro, e ele acalmou-se, pois
devia estar imaginando outra coisa, sem contar que grilo não é novidade. Eu
voltei para a janela, já fechada, e escutei a guizalha dos bichos e quando abri
a janela entrou o enxurro casa adentro. Um tufo de grilos também surgia no
telhado, naquela tritina danada, como uns mastigando outros, caindo aos montes,
estalantes, enquanto já nos protegíamos com cobertores e toalhas de mesa, e
afinal meu avó chegou com sua lança flamejante, feita com cabo de vassoura e
panos de prato na ponta; a cachaça de cabeça atiçava o fogo. Deu para meu avô lança-chamas abrir caminho até a porta da rua, mas do lado de fora havia mais
grilos do que lado de dentro, principalmente em cima de nossas cabeças. O dia
nem amanheceu por que a grilharada cobria a luz do sol.
Parecia o fim do mundo, mas eu me divertia e, por uns poucos
momentos, fiquei pensando: qual o coletivo de grilos? Eu era uma criança muito
estranha. A cidade também era estranha. Nos dias úteis o sangue escorria na
única praça, e às vezes subia as calçadas e sujava cós de calças e inundava
sapatos furados. A corrente vermelha
vinha do matadouro público e só minguava na época da seca. As crianças
brincavam descalças, cobriam-se de sangue, deitadas, embolando na rua, como se
ali fosse um clube.
Na invasão dos grilos lembrei-me ainda das pragas do Egito e,
embora por lá fosse de gafanhoto, a nossa não ficava para trás, especialmente
em termos de quantidade. Até hoje não sei por que Deus lançou aquelas pragas,
pois bastava obrigar o faraó a deixar Moisés ir embora com seu povo. Não.
Preferiu provocar uma desgraça, aliás, dez. Melhor esquecer isso. O importante
é que naquele dia, já amanhecido e ainda escuro, também tínhamos uma praga para
lidar.
Até serem entupidos pelos grilos, que vinham como cardumes
aéreos, os alto-falantes da praça transmitiam informações não confirmadas a
respeito da ocorrência de duas mortes e especulações variadas sobre as causas
da praga, alguns debitando o fato aos desígnios de Deus e outros, mais
científicos, apostando num vento mal comportado, veneno no ar ou mudança na rotação
da terra. Nunca se chegaria a um veredito.
Só no final da tarde chegaram os homens com DDT, substancia que
enfraquece até casca de ovo, e então iniciaram a matança, aspergindo o veneno
em cima de montanhas de grilos, que eram em seguida retiradas por um trator do
governo do federal. Parecia uma tarefa de Sísifo. Quando mais grilos tiravam,
mais grilos apareciam, num barulho agora compacto, vindo de ajuntamentos de
vários formatos. Na frente dos Correios, surgiu uma montanha de grilos mortos e
vivos capaz de esconder a placa da repartição seis palmos acima da porta.
Os jornalistas chegaram em seguida, numa rural Willys azul e
branca, que veio rodado sobre uma estrada de grilos desde o distrito mais
próximo. Alguns insetos estavam no teto do carro, como se fosse um carro
alegórico. Nunca um jornalista esteve na cidade e eles desceram com grilos até
a canela, procurando pelo prefeito, mas foi a professora Aparecida que passou
as primeiras informações. Perguntaram se aquilo era normal. Ela respondeu que não.
Nunca tinha visto coisa parecida, a não ser na Bíblia.
Foi um dia animado, um circo, apesar dos muitos atendimentos no
posto de saúde, a maior parte casos de pânico, moléstia desconhecida naquele
tempo. Com o tsunami de grilos também chegaram do nada figuras expoentes da
sociedade local, reunindo-se ao grupo no quartel-general montado às pressas na
prefeitura para combater a praga. Era preciso estratégia para enfrentar os
grilos que, apesar do alvoroço e da falta de clima, pareciam se reproduzir no
meio daquele aglomerado inquieto.
Todos os moradores foram convocados, crianças e adultos, para
formar um segundo pelotão atrás do pessoal do governo. Recolhíamos os insetos
mortos e jogávamos em fogueiras. O destacamento da Polícia local deu tiros para
cima com o objetivo de dissipar a nuvem escura de grilos. No meio da tarde, eles
ainda tapavam a luz, mas agora como uma peneira, transformando a cidade em
bolotas intercaladas de sombra e luz.
Fomos levados para a cama no final da noite e, no dia seguinte,
a cidade amanheceu como se nada tivesse ocorrido. Nem sinal dos grilos. Do
jeito que apareceram, sumiram. Pelo jeito, os adversários tinham empenhado
todas as suas forças naquela operação, mas vencemos. Teria sido um recuo
tático, conforme uns poucos jornais da época. Senti um enorme orgulho de ter
participado da batalha. Só que os grilos nunca mais voltaram, a vida foi
ficando chata e quando fiz 18 anos fui embora de lá.
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