quinta-feira, 24 de julho de 2014

Só penso em Mercedes Penaflor enquanto caio




11º andar. Queda livre, mas lenta, quase flutuante, pensando em ocorrências antigas, como uma viagem a Havana, no século passado. Ela disse e queria provar. Era bailarina, aluna de Alícia Alonso, não uma vagabunda qualquer do Malecon. Dezoito anos, cabelo oxigenado, bonita e saia esvoaçante. Lá embaixo, as pessoas já devem estar em volta do meu corpo no asfalto. Mas até aqui, até agora, está tranquilo. Tudo depende da posição do observador e do objeto em queda.

10º andar. Uns dirão: suicídio; outros: acidente. É  só uma queda livre – ou um voo. Mercedes Penaflor tinha unhas pintadas de vermelho; em preto, a foice e o martelo. Jovem e comunista, queria conhecer os Estados Unidos por ser um país muito estranho, segundo ela, com alces atropelados, plantações de milho e mísseis em silos. Não se sabe de onde tirou essa ideia. Toda sua cultura vinha de novelas brasileiras, FMs de Miami e manuais de marxismo. Gosto de pensar em Mercedes enquanto caio, enquanto vejo aquela gente no solo, aflita, olhando para o céu de onde venho. Para elas, sou uma bigorna. Para mim, sou uma pena.

9º andar. Além de bailarina, Mercedes também fazia frilas como puta. Normal. Eu só achava esquisito ter de pagar em dinheiro; pagava em passeios de carro alugado na Marina Hemingway, jantares e boa conversa. Justo. Na verdade, encontrei a delícia das delícias do Golfo do México. Chegou com vestidinho simples, mas bacana, e ficou comigo por quinze dias no Islazul Paseo Habana. Meio segundo pode ser uma eternidade, no meu caso, enquanto caio. Dá para seguir com pensamentos, os meus e os de Mercedes. Eu penso, neste exato momento, na boa selvageria vodu do Caribe, numa cena sensual de santeria, no transe suado do batuque; ela pensa em algo mais calmo, eu acho, como sandálias e produtos de beleza.

8º Andar. A gravidade da Terra dá peso ao objeto e o objeto cai ao chão quando é solto. Funciona assim lá embaixo; aqui parece que não. Tenho tempo de sobra para ir a um barzinho perto da embaixada da Espanha, onde atiravam de canhão no fim da tarde, ou ao restaurante Los Nardos, de mãos dadas com Mercedes, que me tratou como namorado naqueles dias. Passa ainda pela cabeça um compacto da minha viagem no Ilyushin da Cubana de Aviación. A cabine escura, sem computadores, tinha ares de reparticipação pública: piloto, co-piloto, navegador um e dois, além do mecânico e quatro aeromoças. O avião subiu com difuldade, mas subiu, e logo eu estava bêbado com o ótimo run de bordo. Podia fumar  cigarro e charuto, tomar mais run, dormir um pouco e ver o dia amanhecer límpido a cem quilômetros da pista do José Martí.

7º andar. Um dia depois conheci Mercedes, na avenida Del Puerto. Olhei, ela olhou e em em pouco tempo aconteceu tudo. Acoplagem perfeita em seu corpo, encaixe de partes necessárias e logo um mergulho num precipício desses de sonho, mas inteiramente prazeroso, sem a parte do medo e sem o despertar brusco, como normalmente ocorre e como ocorre agora, enquanto caio.    

6º andar. Mercedes Penaflor me levou para conhecer sua família. Comemos frango, pollo Al Algibe.  Seu avô era herói da revolução, mas não se lembrava mais.  O pai morreu. A mãe não estava em casa. A recepção ficou a cargo da irmã mais velha. Mostrou quartos e salas e reclamou da falta de manutenção das coisas. "Todo tiende a degradación", ou algo parecido,  disse a irmã de Mercedes, tão bonitinha quanto ela. Ao contrário, eu achei agradável olhar novamente para uma vitrola Telefunken. Estava ligada e reproduzia cumbias buenas e salsas de duplo sentido. Os copos vermelhos, o suco ralo, Mercedes alegre em seu shortinho curto. Nenhum sinal de moralismo dos vizinhos; uns estiveram lá para ouvir música e me senti em casa. Tarde agradável, como agora, enquanto caio. O chão é o limite, mas prefiro pensar noutras possibilidades, como por exemplo esticar minha história para fugir da morte, do jeito de Sheherazade, até decidir meu próprio destino, como faço agora, enquanto caio.

5º Andar – Mercedes bastava. Enfim tinha encontrado a mulher sonhada naquele tempo, que devia ser alegre, sensual, sincera e corajosa. Eu não gostava de mulheres-mulherzinhas e aquela brutalidade de Mercedes completava o quadro do desejo satisfeito. Nem suas escapadas quase diárias me deixavam contrariado. Trabalho é trabalho. Quando ela voltava dizia tudo, em detalhes. Com o tempo, eu já nem prestava atenção. Na rua, eles me veem despencando e eu me vejo num elevador panorâmico, descendo a um milímetro por hora; nem sinto.

4º andar. Fui embora de Cuba, por causa do trabalho, mas nunca deixei de sonhar com Mercedes Penaflor. Entraria num hiato da vida até encontrá-la novamente, como de fato entrei. Passaram-se dez anos para um novo encontro, mero acaso, pura coincidência, levando em conta as circunstâncias. Também poderia ser um milagre. Passava na calle La Dalias, sem rumo, assustado, depois dos tremores,  mas ali não havia bombeiros,  nem luzes nem gritos.  Os bombeiros estavam concentrados em ruas onde o fogo crepitava em quarteiões inteiros.  Quando o som das sirenes parecia mais distante ouvi de uma casa desabada pedidos de socorro de uma mulher, gritando com a mesma voz de Mercedes, e corri para puxar a mão aparente debaixo da laje. Removi os tijolos e blocos de concreto, perto de fios expostos, usando um caibro como alavanca, e enfim levantei a pedra e  puxei Mercedes pelas mãos. Ela saiu, toda arranhada e me deu um beijo na boca. Foi assim que tornei a ver Mercedes, sob os escombros do terremoto em Santiago.

3º andar – Minha única amada em toda a vida estava no Chile com o balé Nacional de Cuba, provando finalmente que era bailarina, mas não poderia se apresentar naquela noite por motivos óbvios. Queria ir embora comigo para qualquer canto do planeta. No entanto, eu tinha que mandar notícias do terremoto para o jornal e a convenci a ficar. Uma semana em  trepadas e bebedeiras nos bares da Calle Pio Nono, se não me engano. Depois, bêbados, embarcávamos no Funicular para ver a cidade de cima e a Cordilheira dos Andes. Estive bem mais alto do que presentemente, enquanto caio e enquanto me sinto muito satisfeito em ter vivido aquele dia.

2º andar. Passado, presente e futuro se misturam nesta queda. Daí a confusão dos tempos verbais e de outros tempos, porque tudo pode mudar, exceto Mercedes, ainda viva nos meus meus sonhos, desta vez no Brasil, na casinha perto da  oficina, em São Paulo, e mais na frente embarcando  para uma praia de Pernambuco,  parecida com Varadero, conforme Mercedes. Fumávamos no final da tarde até a chapação geral e discutíamos política com os nativos quando chegava a noite. Mais tarde, o de sempre: sexo, maconha e goiabada. Dormia cedo. Amanhã tem praia. Talvez eu esteja vendo a cena com mais clareza agora, enquanto caio, do que antes enquanto a vivia. 


1º andar. Mercedes completou sessenta anos na semana passada. Nossos filhos foram embora e eu fiquei velho. De vez em quando ela sonha com La Habana, a melancolia típica das ilhas, os suores e o cheiro dos homens. Mas balança a cabeça e sacode as mãos, no estilo  "deixa prá lá",  voltando-se para minha saúde debilitada como uma santa, olhando para meu rosto e sonhando com nossos dias em Cuba  e em outros países, até parar aqui, vizinhos da oficina mecânica. Mercedes realiza meus desejos, realizou todos - com sexo, dedicação e inteligência. Também fiz a minha parte. Agora chega. Mercedes tem uma última tarefa e vai cumpri-la. Sou arrastado para o velho carro e fico sonolento na viagem até o centro. Desembarco na minha cadeira de rodas, subimos pelo elevador de serviço e cá estamos nós, em cima do edifício. Dou ok e Mercedes me empurra – era nosso trato. Enquanto caio, tenho direito a outra vida, em alta definição, olhando Mercedes de agora e aquela de antes, no Malecon, perfeita e cheirosa. Há um estatelamento previsto, o espanto da pequena multidão, mas talvez eu não caia nunca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário