11º andar. Queda livre, mas lenta, quase
flutuante, pensando em ocorrências antigas, como uma viagem a Havana, no século
passado. Ela disse e queria provar. Era bailarina, aluna de Alícia Alonso, não
uma vagabunda qualquer do Malecon. Dezoito anos, cabelo oxigenado, bonita e saia
esvoaçante. Lá embaixo, as pessoas já devem estar em volta do meu corpo no
asfalto. Mas até aqui, até agora, está tranquilo. Tudo depende da posição do observador
e do objeto em queda.
10º andar. Uns dirão: suicídio; outros:
acidente. É só uma queda livre – ou um
voo. Mercedes Penaflor tinha unhas pintadas de vermelho; em preto, a foice e o
martelo. Jovem e comunista, queria conhecer os Estados Unidos por ser um país
muito estranho, segundo ela, com alces atropelados, plantações de milho e
mísseis em silos. Não se sabe de onde tirou essa ideia. Toda sua cultura vinha
de novelas brasileiras, FMs de Miami e manuais de marxismo. Gosto de pensar em
Mercedes enquanto caio, enquanto vejo aquela gente no solo, aflita, olhando
para o céu de onde venho. Para elas, sou uma bigorna. Para mim, sou uma pena.
9º andar. Além de bailarina, Mercedes também
fazia frilas como puta. Normal. Eu só achava esquisito ter de pagar em dinheiro;
pagava em passeios de carro alugado na Marina Hemingway, jantares e boa
conversa. Justo. Na verdade, encontrei a delícia das delícias do Golfo do
México. Chegou com vestidinho simples, mas bacana, e ficou comigo por quinze
dias no Islazul Paseo Habana. Meio segundo pode ser uma eternidade, no meu
caso, enquanto caio. Dá para seguir com pensamentos, os meus e os de Mercedes.
Eu penso, neste exato momento, na boa selvageria vodu do Caribe, numa cena
sensual de santeria, no transe suado do batuque; ela pensa em algo mais calmo,
eu acho, como sandálias e produtos de beleza.
8º Andar. A gravidade da Terra dá peso ao
objeto e o objeto cai ao chão quando é solto. Funciona assim lá embaixo; aqui
parece que não. Tenho tempo de sobra para ir a um barzinho perto da embaixada
da Espanha, onde atiravam de canhão no fim da tarde, ou ao restaurante Los
Nardos, de mãos dadas com Mercedes, que me tratou como namorado naqueles dias.
Passa ainda pela cabeça um compacto da minha viagem no Ilyushin da Cubana de
Aviación. A cabine escura, sem computadores, tinha ares de reparticipação
pública: piloto, co-piloto, navegador um e dois, além do mecânico e quatro
aeromoças. O avião subiu com difuldade, mas subiu, e logo eu estava bêbado com
o ótimo run de bordo. Podia fumar cigarro
e charuto, tomar mais run, dormir um pouco e ver o dia amanhecer límpido a cem
quilômetros da pista do José Martí.
7º andar. Um dia depois conheci Mercedes, na
avenida Del Puerto. Olhei, ela olhou e em em pouco tempo aconteceu tudo.
Acoplagem perfeita em seu corpo, encaixe de partes necessárias e logo um
mergulho num precipício desses de sonho, mas inteiramente prazeroso, sem a
parte do medo e sem o despertar brusco, como normalmente ocorre e como ocorre
agora, enquanto caio.
6º andar. Mercedes Penaflor me levou para
conhecer sua família. Comemos frango, pollo Al Algibe. Seu avô era herói da revolução, mas não se
lembrava mais. O pai morreu. A mãe não
estava em casa. A recepção
ficou a cargo da irmã mais velha. Mostrou quartos e salas e reclamou da falta
de manutenção das coisas. "Todo tiende a degradación", ou algo
parecido, disse a irmã de Mercedes, tão
bonitinha quanto ela. Ao contrário, eu achei agradável olhar novamente para uma
vitrola Telefunken. Estava ligada e reproduzia cumbias buenas e salsas de duplo
sentido. Os copos vermelhos, o suco ralo, Mercedes alegre em seu shortinho
curto. Nenhum sinal de moralismo dos vizinhos; uns estiveram lá para ouvir
música e me senti em casa. Tarde agradável, como agora, enquanto caio. O chão é
o limite,
mas prefiro pensar noutras possibilidades, como por exemplo esticar minha
história para fugir da morte, do jeito de Sheherazade,
até decidir meu próprio destino, como faço agora, enquanto caio.
5º Andar – Mercedes bastava. Enfim tinha encontrado a mulher sonhada
naquele tempo, que devia ser alegre, sensual, sincera e corajosa. Eu não
gostava de mulheres-mulherzinhas e aquela brutalidade de Mercedes completava o
quadro do desejo satisfeito. Nem suas escapadas quase diárias me deixavam
contrariado. Trabalho é trabalho. Quando ela voltava dizia tudo, em detalhes.
Com o tempo, eu já nem prestava atenção. Na rua, eles me veem despencando e eu
me vejo num elevador panorâmico, descendo a um milímetro por hora; nem sinto.
4º andar. Fui embora de Cuba, por causa do
trabalho, mas nunca deixei de sonhar com Mercedes Penaflor. Entraria num hiato
da vida até encontrá-la novamente, como de fato entrei. Passaram-se dez anos para
um novo encontro, mero acaso, pura coincidência, levando em conta as circunstâncias.
Também poderia ser um milagre. Passava na calle La Dalias, sem rumo, assustado,
depois dos tremores, mas ali não havia
bombeiros, nem luzes nem gritos. Os bombeiros estavam concentrados em ruas
onde o fogo crepitava em quarteiões inteiros.
Quando o som das sirenes parecia mais distante ouvi de uma casa desabada
pedidos de socorro de uma mulher, gritando com a mesma voz de Mercedes, e corri
para puxar a mão aparente debaixo da laje. Removi os tijolos e blocos de
concreto, perto de fios expostos, usando um caibro como alavanca, e enfim
levantei a pedra e puxei Mercedes pelas
mãos. Ela saiu, toda arranhada e me deu um beijo na boca. Foi assim que tornei
a ver Mercedes, sob os escombros do terremoto em Santiago.
3º andar – Minha única amada em toda a vida
estava no Chile com o balé Nacional de Cuba, provando finalmente que era bailarina, mas não poderia se apresentar naquela noite por motivos óbvios.
Queria ir embora comigo para qualquer canto do planeta. No entanto, eu tinha
que mandar notícias do terremoto para o jornal e a convenci a ficar. Uma semana
em trepadas e bebedeiras nos bares da
Calle Pio Nono, se não me engano. Depois, bêbados, embarcávamos no Funicular
para ver a cidade de cima e a Cordilheira dos Andes. Estive bem mais alto do
que presentemente, enquanto caio e enquanto me sinto muito satisfeito em ter
vivido aquele dia.
2º andar. Passado, presente e futuro se
misturam nesta queda. Daí a confusão dos tempos verbais e de outros tempos,
porque tudo pode mudar, exceto Mercedes, ainda viva nos meus meus sonhos, desta
vez no Brasil, na casinha perto da
oficina, em São Paulo, e mais na frente embarcando para uma praia de Pernambuco, parecida com Varadero, conforme Mercedes.
Fumávamos no final da tarde até a chapação geral e discutíamos política com os
nativos quando chegava a noite. Mais tarde, o de sempre: sexo, maconha e
goiabada. Dormia cedo. Amanhã tem praia. Talvez eu esteja vendo a cena com mais
clareza agora, enquanto caio, do que antes enquanto a vivia.
1º andar. Mercedes completou sessenta anos
na semana passada. Nossos filhos foram embora e eu fiquei velho. De vez em
quando ela sonha com La Habana, a melancolia típica das ilhas, os suores e o cheiro
dos homens. Mas balança a cabeça e sacode as mãos, no estilo "deixa prá lá", voltando-se para minha saúde debilitada como
uma santa, olhando para meu rosto e sonhando com nossos dias em Cuba e em outros países, até parar aqui, vizinhos
da oficina mecânica. Mercedes realiza meus desejos, realizou todos - com sexo,
dedicação e inteligência. Também fiz a minha parte. Agora chega. Mercedes tem
uma última tarefa e vai cumpri-la. Sou arrastado para o velho carro e fico
sonolento na viagem até o centro. Desembarco na minha cadeira de rodas, subimos
pelo elevador de serviço e cá estamos nós, em cima do edifício. Dou ok e
Mercedes me empurra – era nosso trato. Enquanto caio, tenho direito a outra
vida, em alta definição, olhando Mercedes de agora e aquela de antes, no
Malecon, perfeita e cheirosa. Há um estatelamento previsto, o espanto da
pequena multidão, mas talvez eu não caia nunca.
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