quarta-feira, 2 de julho de 2014

Paisagem do ajuste



Eu tinha que me organizar naquele ano estranho, quase fora do calendário, e tentei começar pelas meias, mas não deu para formar pares. Marcas e cores diferentes. Juntei as parecidas. Depois, as roupas sujas. Adiantaria lavar sem sabão? Talvez não adiantasse, mas era uma atividade, uma ocupação de desempregado que se cansou de olhar para o teto.

Não havia mais moedas. Com setenta centavos eu poderia comprar um cigarro no varejo. Decidi parar de fumar. Poderia ainda varrer o apartamento. Pensei: varro, sou despejado e vou embora. Não varri. O envelope do Fórum estava no chão, aberto. Uma semana para pagar os aluguéis atrasados; só não tinha dinheiro nem iria ter. Dinheiro traz felicidade. Dinheiro é melhor do que amor, eu achava.

Dois dias antes havia vendido minhas coisas: um livro grande sobre pássaros brasileiros, um teclado de computador, o filtro e o telefone preto e antigo, o item mais caro. Receita, gasta em menos de uma hora:  47,00. A preços de hoje. Rendeu um prato feito, uma Coca-cola e um analgésico. Fui perdulário. 

Estive no supermercado e vi as prateleiras. Bons produtos dispostos de acordo com a lógica dos supermercados. Nos checkstands as pessoas compram por impulso, especialmente doces. Mais adiante, os produtos destino, aqueles que levam o cliente para dentro da loja, segundo a Associação de Marketing Promocional. Se tivesse dinheiro, teria um impulso e compraria um barbeador e um saco de balas. Foi uma visita rápida e sem sentido.

Voltei para o quarto para dormir, que é uma boa iniciativa nessas horas. Durmi, acordei e tudo estava como antes, mas era um dia a mais. De certa forma, foi uma vitória.

Meus contatos com as pessoas eram esparsos, cada vez mais raros. Da última vez, ela sugeriu: organize sua vida, compre um guarda-roupa. Não sabia do principal, minha demissão por justa causa. Nunca mais a vi. Eu queria dinheiro emprestado; ela veio com conselhos. Não empresta a amigos para não acabar a amizade. Para mim é o contrário. Não empresta, tchau, vou continuar a escrever a história das minhas misérias, num tom fora de moda, tentando imitar autores russos.

Taquei um texto sobre minha amiga só para fugir da realidade – o despejo e o fim do FGTS: “Ela me ensinou a usar talheres, pois antes eu comia com as mãos os restos da casa, farelos caídos da mesa, numa luta feroz com os gatos; ela me ensinou a forrar a cama e eu já não me espalhava pela sala, como um líquido, esperando o dia amanhecer, sem lugar para dormir; ela me ensinou a dar nós, calçar os sapatos, falar em público e mastigar antes de engolir. Depois me ensinou a fazer as malas e a ir embora ”. Ficou nisso.

Sempre achei que haveria uma saída, caso procurasse uma; não era meu caso. Eu esperava, apenas, ainda pensando nas meias sujas e desacompanhadas, nas caixas de pizza na sala – sobras de uma era de opulência – e no fim do dinheiro. Precisava de um emprego, mas não existiam mais empregos, sumiram quase todos no começo do ano por causa dos ajustes. O meu até que durou, mas vieram as demissões em massa com o objetivo de acertar as contas públicas. Acertaram as contas públicas e esqueceram da gente. O governo virou um grande escritório de contabilidade. Não me refiro ao governo atual nem aos anteriores. Que fique claro.

O cenário era esse naquela época perdida. Só sobreviveriam os que guardaram na poupança e os que viviam de renda, além dos ricos, do reduzido quadro de funcionários públicos e da polícia. Aos poucos, todos passaram a se preocupar apenas com sua própria situação, um pesadelo suficiente, enquanto esperavam fazendo besteiras sem fins lucrativos, como escrever diários e olhar vitrines.

Embora quase todos se achassem na miséria, minha miséria parecia maior, por ser minha, pela falta de organização e iniciativa. Não desejava a morte nem a vida. Queria que o tempo corresse, mas os dias eram longos, pareciam meses, e o incômodo da fome só não era maior do que a preguiça.


Um dia saí de casa, segui em frente, num caminho sem paisagem. Continuo andando até hoje.

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