Nos anos 70,
Rio de Janeiro, cumpríamos alguns ritos ditados pela música. Ainda não existia
dormir na grama do aterro sob o Céu, mas íamos a Niterói, na barca, em direção a
um show de um amigo nosso, inteiramente desconhecido na cidade, não importava,
era amigo nosso, por sinal o mais aparelhado para ficar famoso na metrópole.
Tínhamos uma enorme certeza disso, porque nos sentíamos acima da média, bem
acima, e um dia nosso cantor vingaria, como de fato vingou.
Passados
tantos anos, uma mudança de século no meio, e um dos nossos olha para trás de um
jeito nostálgico. Não consegue se livrar da vontade de caminhar contra o vento,
andar por ai, acampar em praias ou casas de amigos. Lembrou da festa contínua.
Dormíamos, festa, acordávamos, festa. Não que houvesse gente dançando, nem
havia música, era só o clima entre as pessoas, a natural sensualidade, a falta
de pressa, essas recordações todas voltavam para ele junto com a dificuldade de
descobrir por que aqueles tempos provocaram tantas sensações agradáveis e
provocam as mesmas sensações até hoje, só de lembrar. Mas ele se enquadrou.
Virou publicitário.
O fato de
estar com vinte poucos anos, observando estrelas, namorando com o coração na
boca e cultivando utopias poderia explicar tudo. Hoje também é assim, só que a
gente não participa, observou um dos nossos, e ainda retrucou a tese de que os
70 foram anos especiais. Não foram, segundo ele, porque vivíamos divididos
entre a porrloquice e a necessidade de entrar num partido clandestino para
derrubar a ditadura. Maconheiro e
militante ao mesmo tempo, essa era a confusão, não daria certo. Então oscilávamos
entre a música de protesto e as letras mais viajantes dos Novos Baianos. Ele argumentou
ainda que, nos dias atuais, não há risco de ser morto a tiros por razões
políticas, então a partir daí fica mais fácil se preocupar com coisas mais
importantes, como a tecnologia e a Psicanálise.
Outro pulou
na conversa com ideia contrária, listando o blá-blá-blá contra a falta de
sentido do novo século, a começar pela vida virtual estabelecida, quase tão
necessária quanto a real, segundo ele. “Antes da Internet os sentimentos eram
mais genuínos, curtia-se um barato e não o Facebook”, disse ele, saudoso como
um Jabor. O amigo tinha um olhar especial para sua década e parecia vivê-la
hoje, ou pelo menos tentava, e no fundo sentia desprezo pelas formalidades do
presente e por amigos integrados, incluindo o publicitário e o cantor famoso,
agora mais famoso e mais distante. Um velho calção de banho, um dia pra vadiar.
Vivia assim, entre a praia e o boteco, num Rio imaginário, recriado a partir do
rock paulêra, como se dizia nos 70’, a essência da MPB e o batuque dos ritmos
populares.
No finzinho
da década, ele celebrou a anistia fumando um baseado e intuiu que dali em
diante não precisaria mais se meter em política, pois bastava a democracia e
assim estaria perfeito, o sufoco acabara, era o momento de aproveitar a vida da
forma linda, leve e solta como sempre sonhou. Mas vieram novas complicações,
sinais de anos difíceis e confusões de sua própria juventude em fim de feira,
como a necessidade de arranjar um emprego, quem sabe casar e ter filhos, como
fez a maioria de seus amigos. No entanto, ele resolveu manter-se na mesma, no
lugar comum, beira do mar, ainda pensando em sua honey baby, ouvindo Gal, vendo
pôr do sol no Posto nove. Ficava ali, naquele fim de década mentalmente
reprisado, como um cão sem dono, ou num eterno retorno a lugares já descobertos
pelos comuns, vagando por Arembepe, Olinda, Trindade e assim por diante.
Hoje tem
cabelos brancos compridos, com rabo de cavalo.
Continua sem trabalho, a não ser em projetos, faz umas fotos, escreve
poemas marginais tardios, e corre atrás de fogueiras em praias e mocas mais
novas que usam saias indianas e gostam de reggae. Com o dinheiro da pequena
herança da família, vai levando, sempre com a cabeça lá atrás, nos anos 70, e
ainda se tranca no quarto para ouvir Pink Floyd nas alturas, béque aceso, um
olhar perdido em 2012, mas plenamente ajustado à época que escolheu para viver,
ao lado de seus vinis de Beto Guedes, livros de Carlos Castanheira e seu casaco
de general.
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