domingo, 12 de agosto de 2012

Nos anos 70, ele parou





Nos anos 70, Rio de Janeiro, cumpríamos alguns ritos ditados pela música. Ainda não existia dormir na grama do aterro sob o Céu, mas íamos a Niterói, na barca, em direção a um show de um amigo nosso, inteiramente desconhecido na cidade, não importava, era amigo nosso, por sinal o mais aparelhado para ficar famoso na metrópole. Tínhamos uma enorme certeza disso, porque nos sentíamos acima da média, bem acima, e um dia nosso cantor vingaria, como de fato vingou.

Passados tantos anos, uma mudança de século no meio, e um dos nossos olha para trás de um jeito nostálgico. Não consegue se livrar da vontade de caminhar contra o vento, andar por ai, acampar em praias ou casas de amigos. Lembrou da festa contínua. Dormíamos, festa, acordávamos, festa. Não que houvesse gente dançando, nem havia música, era só o clima entre as pessoas, a natural sensualidade, a falta de pressa, essas recordações todas voltavam para ele junto com a dificuldade de descobrir por que aqueles tempos provocaram tantas sensações agradáveis e provocam as mesmas sensações até hoje, só de lembrar. Mas ele se enquadrou. Virou publicitário.

O fato de estar com vinte poucos anos, observando estrelas, namorando com o coração na boca e cultivando utopias poderia explicar tudo. Hoje também é assim, só que a gente não participa, observou um dos nossos, e ainda retrucou a tese de que os 70 foram anos especiais. Não foram, segundo ele, porque vivíamos divididos entre a porrloquice e a necessidade de entrar num partido clandestino para derrubar a ditadura.  Maconheiro e militante ao mesmo tempo, essa era a confusão, não daria certo. Então oscilávamos entre a música de protesto e as letras mais viajantes dos Novos Baianos. Ele argumentou ainda que, nos dias atuais, não há risco de ser morto a tiros por razões políticas, então a partir daí fica mais fácil se preocupar com coisas mais importantes, como a tecnologia e a Psicanálise.

Outro pulou na conversa com ideia contrária, listando o blá-blá-blá contra a falta de sentido do novo século, a começar pela vida virtual estabelecida, quase tão necessária quanto a real, segundo ele. “Antes da Internet os sentimentos eram mais genuínos, curtia-se um barato e não o Facebook”, disse ele, saudoso como um Jabor. O amigo tinha um olhar especial para sua década e parecia vivê-la hoje, ou pelo menos tentava, e no fundo sentia desprezo pelas formalidades do presente e por amigos integrados, incluindo o publicitário e o cantor famoso, agora mais famoso e mais distante. Um velho calção de banho, um dia pra vadiar. Vivia assim, entre a praia e o boteco, num Rio imaginário, recriado a partir do rock paulêra, como se dizia nos 70’, a essência da MPB e o batuque dos ritmos populares.

No finzinho da década, ele celebrou a anistia fumando um baseado e intuiu que dali em diante não precisaria mais se meter em política, pois bastava a democracia e assim estaria perfeito, o sufoco acabara, era o momento de aproveitar a vida da forma linda, leve e solta como sempre sonhou. Mas vieram novas complicações, sinais de anos difíceis e confusões de sua própria juventude em fim de feira, como a necessidade de arranjar um emprego, quem sabe casar e ter filhos, como fez a maioria de seus amigos. No entanto, ele resolveu manter-se na mesma, no lugar comum, beira do mar, ainda pensando em sua honey baby, ouvindo Gal, vendo pôr do sol no Posto nove. Ficava ali, naquele fim de década mentalmente reprisado, como um cão sem dono, ou num eterno retorno a lugares já descobertos pelos comuns, vagando por Arembepe, Olinda, Trindade e assim por diante.

Hoje tem cabelos brancos compridos, com rabo de cavalo.  Continua sem trabalho, a não ser em projetos, faz umas fotos, escreve poemas marginais tardios, e corre atrás de fogueiras em praias e mocas mais novas que usam saias indianas e gostam de reggae. Com o dinheiro da pequena herança da família, vai levando, sempre com a cabeça lá atrás, nos anos 70, e ainda se tranca no quarto para ouvir Pink Floyd nas alturas, béque aceso, um olhar perdido em 2012, mas plenamente ajustado à época que escolheu para viver, ao lado de seus vinis de Beto Guedes, livros de Carlos Castanheira e seu casaco de general.

Nenhum comentário:

Postar um comentário