quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O agregado



Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo
. Machado de Assis (Dom Casmurro)



Ele adorava aquela família rica. Era quase nada diante do império levantado pelo patriarca, mas, sabe-se lá por que, ganhou intimidade no seio aristocrático, obviamente reconhecendo seu lugar. Havia compensações de sobra para ele gostar de sua semi-adoção pelos donos do mercado de máquinas pesadas: Alpes, ternos bem cortados, festas históricas e pessoas bonitas. Além de tudo, um sentimento estranho, quase de adoração, surgira desde que passou a compartir o lar milionário. Com tal sentimento, gostaria de viver pelo resto da vida.

Quando a herdeira viajava, ele entrava em depressão. Era sua referência na família. Então, voltava a seus pares sociais, até em bares de segunda, para contar as delícias do andar de cima. Nesses momentos, se embebedava e passava a pintar o retrato dos protetores.

- Os seguranças estão proibidos de olhar para a patroa, dizia. Ele expunha tais características com orgulho, absorvendo a moral dos donos, pois achava lindo tudo aquilo, e até mesmo um crime nebuloso que fechou a família em copas, ganhou ares de filme noir em sua conversa bastante atraente, salpicada com temperos de cultura livresca. Alguns de seus interlocutores engoliam o discurso; os contrariados calavam, por medo de passarem por invejosos.

O agregado em questão é um cínico. Tem família, pai, mãe e irmãos, mas pouco aparecia para vê-los. Praticamente morava em um quarto de hóspede na mansão, que usava sem pedir consentimento. No mais, abria geladeiras, folheiava livros, fazia interurbanos e pedia um motorista de vez em quando. Estava dentro das regras. O que não podia era entrar nos negócios da família. Podia – e pôde ainda mais - conhecer os mais íntimos sentimentos da herdeira. Estavam implicitamente vetadas perguntas sobre contrato e licitações. Seria intimidade demais. Ele entendia.

A herdeira de não-sei-quantos sobrenomes (aliás, sei quantos e quais, mas convém decliná-los para proteger o narrador e seu personagem) gostava de longas temporadas em hotéis, onde alugava andares inteiros para seu entourage, que incluía médico, massagista e cabeleireiro. Às vezes ele ia junto, já esteve até na Índia, e se encarregava de compras, passeios e, eventualmente, alguma droga ilícita. Não era de pedir dinheiro. O emprego público conseguido pela herdeira garantia sua sobrevivência descansada. Não precisava dar expediente. Mesmo assim esteve nadando em dívidas há alguns anos. Ficou calado, mas a madame sentiu o drama e obteve informações. Cartões, cheques especiais e despesas outras foram quitadas na hora. Ele apenas chorou ao pé da cama da benfeitora.

O marco adulatório dessa relação talvez tenha sido o encontro com a herdeira, então com 15 anos, num curso de inglês que ambos freqüentavam. Ele com bolsa integral; ela com quatro seguranças. Ficaram amigos por compartilharem banalidades, coisinhas frívolas, fofocas sobre o Jet set e alguns exotismos e esoterismos. De saída, ele sabia com quem estava tratando e cuidou de frear a admiração, que mais tarde se tornaria aberta e quase pegajosa. Depois ficou mais sóbria. Mas não seria demais, naquele momento, bajular dentro dos limites – ela adorava elogios em público, seleto público, bem-nascidos misturados com artistas. Acima de tudo se deram bem porque juntos bebiam muito, desesperadamente. Na sequência vieram outras drogas e uma hepatite C para ele.

O tempo voou, passou o século e ele manteve-se na célula-mater alheia, dominando espaços e sem infringir o código número um: você não é da família. O que mudou, então? Num certo momento, precisaram ainda mais dele para o despejo diário de lágrimas e queixas. A herdeira, a bela de outrora, transformou-se em 120 quilos de diabetes e depressão, embora ainda estivesse à frente dos negócios. Houve outras duas mortes na família, uma delas por overdose. A caçula, chegada em cultura, festas e perigos em geral.

Dia desses, pelos jornais, mais uma densa névoa desceu sobre a família mais rica daquele pedaço do Brasil. O patriarca, já morto, tinha um passado sombrio, estamparam os jornais. Esteve ligado aos nazistas, antes e durante parte da Segunda Guerra. Dessa vez ele foi convocado para ouvir a versão da herdeira e, em seguida, instruído a sair por ai, agora na condição de assessor de imprensa, administrando a crise com bastante talento e dinheiro suficiente para colocar uma pedra no assunto.

- Não vamos nos defender. Política é uma questão de gosto – instruiu a herdeira, como se estivesse tratando de uma querela PT x PSDB. A ligação com Hitler, documentada, tinha tudo para seguir em frente, nas páginas do país inteiro, mas habilidade é tudo, como ela sempre diria. O assessor e amigo não seguiu a linha de pensamento da herdeira. Preferiu adotar a clássica desculpa do inocente útil que se deixou iludir por ideologias estranhas, especialmente o integralismo brasileiro, e daí em diante passou a citar nomes transformados em vestais da democracia depois de uma temporada entre os camisas pretas de Plínio Salgado - o mais próximo que tínhamos do nacional socialismo. Usou como exemplo Dom Helder Câmara, falecido arcebispo de Olinda e Recife, cuja passagem pelo integralismo foi naturalmente ofuscada pela posterior posição de defesa dos direitos humanos.

Nosso herói, portanto, estava maduro. Como José Dias, o agregado de Dom Casmurro, chegou ao ponto em que dava palpites sobre temas da maior gravidade e antes proibidos. Abriu-se a porta para ele falar dos negócios das empresas. Começou a expor, com todo jeito, leves discordâncias táticas. Foi um pouco mais fundo, ao abordar, pisando em ovos, o comportamento deslocado de alguns membros da família diante da realidade do mercado e do País. Pela primeira vez pensou como eles eram feudais. Mas não disse isso, nem de longe, e nada em seu íntimo o faria perder a admiração e o respeito pela herdeira e sua corporação. Nem foi além da conta nas questões corporativas, especialmente a divisão de cargos. Entre ele e a herdeira, havia uma afeição parecida com a do cão e sua dona. Sem muitos questionamentos, embora ele estivesse mudando.

O importante é que, graças ao império familiar ele ganhou uma profissão. Cursou jornalismo com esse fim - defender a família na imprensa como sempre fez informalmente em outros círculos. Só que a situação era mais complicada. O patriarca, mais uma vez ele, teria uma pequena multidão de filhos e todos, num único processo, pediam a sua parte. A herdeira pressentia: primeiro vêm os advogados, depois só restam os coveiros. Junto com o nazismo, a descendência bastarda tornou-se um prato cheio para jornais e revistas semanais. O Príapo-nazi deixara uma herança problemática.

No auge das acusações e dos processos de paternidade ele serviu de ponte entre a família, a imprensa e os advogados. Avançou um pouco mais. Indicou linhas de defesa, contratou auxiliares e convenceu a herdeira a adotar gestos da responsabilidade social, defesa do meio ambiente, essas coisas. Não deu inteiramente certo. Alguns milhões foram perdidos na partilha de bens com os novos integrantes da numerosa família, alguns que nem sabiam assinar o nome. O principal, porém, foi garantido – a herdeira não perdeu o controle das ações e agora dividia com o agregado tarefas que eram dos três irmãos, todos sem jeito para os negócios, um deles metido com cinema. Por fora, ele e a madame iniciaram empreendimentos paralelos, como sócios, na área da construção civil, mineração e turismo. Uma fortuna à parte ia se formando, enquanto a saúde dela começava a dar sinais de colapso.

A morte da herdeira foi extravagante e sem elegância. Muitos gritos, fluidos e contorções. Estava desfigurada pelos medicamentos. No velório, os irmãos já estavam nos cálculos e em cima do testamento. Não sabiam que iriam encontram um ninho jurídico e burocrático que os igualava aos meio-irmãos. O agregado, ao contrário, estava rico. Bancou os tratamentos da herdeira, em hospitais do Brasil e do exterior, mas compensou os gastos com novos investimentos, inclusive num dos hospitais de excelência em que ela se internava com freqüência.

Hoje ele só lamenta não carregar o nome da família. Sente falta da herdeira, ganhou inimigos e amigos poderosos, mas a madrinha sempre está em seus pensamentos. Foi dele o discurso à beira do túmulo. Emoção bem dosada, texto limpo, a peça fora encomendada a um bom cronista da província. No final, uma frase de Shakespeare saltou da página: "A gratidão é a maior riqueza dos humildes"

Um comentário:

Cristina Lopes disse...

Amei, não resisti e divulguei por e-mail e G+. Conheço agregados poderosos.Rs

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