terça-feira, 11 de junho de 2019

A barata




Uma barata passeia livremente dentro do apartamento sem móveis e nem liga para a presença do homem deitado, nu, no meio da sala; vez por outra, como um animal amestrado, a barata passa por cima do corpo e faz pequenas piruetas em torno do umbigo do homem.

O homem se levanta, respira fundo, e vai para o saco de dormir no quarto, sentindo-se também uma barata, igual no livro, embora Metamorfose não seja sobre um inseto especifico. Agora, ela também está no quarto, circula como Fred Astaire nos rodapés e emite um som melancólico de seus espiráculos; bastava um microscópio e veríamos um olhar expressivo e solidário com o homem.

O apartamento precisa ser desocupado. Despejo. A barata parece saber disso e comporta-se quase como um cachorro lamentando por seu dono. O homem percebeu, mas olha a barata pensando em outras coisas, o fim do emprego, o fim de todos os empregos possíveis para alguém que faz uma tarefa que não existe mais.
E pensa no tempo do emprego

- Lembra-se do tempo dos empregos? – diz o homem à barata -.Tive uns.  Bastava ter ginásio completo e curso de datilografia. Logo uma colocação no serviço público. Eu gostava das máquinas de escrever. Quando chegava ao fim da linha, eu rolava o cilindro de volta como quem recarrega uma arma, e repetia o mesmo gesto muitas vezes e era bonito quando todos no escritório estavam em sincronia; parecia uma orquestra. Eu preferia o barulho surdo das teclas sobre papeis intercalados de carbono. Quanto mais cópias, mais surdo o barulho. Quanto mais força, mais as letras chegavam mais nítidas à última folha.  Às vezes o chefe aparecia para perguntar quem datilografou isso aqui e reclamava ou dizia meus parabéns. Aprendi num curso noturno. ASDFG até pegar prática, até escrever sem olhar para a máquina, até conseguir usar os cinco dedos.

Bons tempos – exclamei à barata.

A lei

Pensando por esse lado eu cometo crimes porque a vida é curta e não adianta viver na merda durante cem anos se for tudo igual todo dia e mais à frente a gente vai perceber que não viveu nada.  Então eu roubei e fui preso. Nem liguei. Estava previsto. O que tinha sido bom foi muito bom no momento do ocorrido. Valeu a pena andar como rico por mais de dez anos e agora sei como funciona tudo lá em cima. Primeiro eu quis todos os objetos e tive. Depois comprei algumas pessoas; umas de modo suave, outras explicitamente.  Quanto custa? É tanto. Vamos nessa. Se estiverem pensando em prostitutas ou políticos, estão errados. São outros profissionais, gente dos poderes, aos quais meus negócios ilegais interessam.  Gostam como a coisa é feita. Sem sair de casa. Pelos computadores. O programa é bom, os nomes somem, enquanto o dinheiro chega ao destino livre desses intrusos nos negócios - a polícia, por exemplo. Com facilitações adequadas, cada um pega a sua parte. Eu compro, mas ganho ainda mais, pois só investi nisso a vontade de fazer. Não tenho culpa porque só roubo quem já tem muito, embora os clientes, na maioria dos casos, também tenham muito e às vezes mais. Uns roubam os outros por meu intermédio, no mercado de capitais, e se agora me encontro privado da liberdade, tenho o espírito livre para criar outras maneiras de burlar a bolsa de valores e outros grandes templos do capital. 

Cada um vive do jeito que quiser e embora alguém possa considerar que o mesmo não vale no meu caso, uma situação ilícita, na maior parte das vezes, pelo menos, eu respondo que as leis mudam com o tempo – o que vale hoje, não vale amanhã – e que se a própria justiça funciona desse jeito, deixando uns crimes de lado e acrescentando outros, eu também posso estar sujeito a oscilações; posso inclusive levar em conta que tenho o direito de me arrepender, devolver o dinheiro reclamado, ou o que sobrou. Nessas horas, quando tudo se encerra, tem que ter desapego. Devolva o que puder ajudar em sua libertação. Conheço o judiciário como a palma da mão, como se conhece o inimigo e procuro me antecipar, sem contar outras providências, de ordem mais prática e também muito mais caras.

O resultado é que consigo sair – sempre consegui –, mas saio quebrado em termos de finanças, em dívida com advogados e ainda devendo no ramo das “outras providências”, conforme disse. Saio e tento recomeçar a vida dentro dos padrões, tudo em dia. Só que a falta do que tinha e perdi me leva a querer de novo e vejo que os caminhos ditos legais são muito precários em remuneração, exigindo mais trabalho em troca de menos dinheiro. Então volto à cena, com outros truques e justificativas.  




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