Todo mundo preocupado com o dia de amanhã e
Amélia preocupada com o passado. Quer outra utilidade para o que já se foi, além
de servir apenas à memória; quer sentir as mesmas sensações de um único ano,
1979, nem que seja para reviver em looping seus melhores momentos, mesmo como simulacro
de vida em repetição infinita ou até cansar. Fosse possível, ela toparia, em
troca deste agora insatisfatório e oco, uma viagem circular à mais feliz
temporada de sua existência. Eis o problema que estraga o presente e o futuro
de Amélia e perturba sua carreira de escritora de livros de autoajuda.
Ninguém sabe o que decorre na cabeça dessa
mulher, cuja foto às vezes surge numa livraria de aeroporto. Crê, pelo que escreve, que a imaginam prospera
e resolvida, independente e digna de todos os amores do mundo. Vende a seus
leitores a beleza do pensamento positivo, o siga em frente, a força da vontade,
enquanto fora do papel impresso é um case
de pessimismo. Todos desconhecem, por exemplo, o desprezo de Amélia por seu
ofício, o horror primordial pelos livros de que escreve.
Não se sabe ainda do que deriva a aparente
falta de lógica em seu estranho desejo de percorrer 1979, de forma incessante, rodando
em cenas passadas, abraçando pessoas antigas, algumas já mortas, perdidas em
estações da lembrança. Tirou essas idéias em coisas que leu, em livros obscuros
e científicos, pois ler ainda a diverte e abre espaços para imaginar fendas ou
buracos onde possa entrar e sair rodopiando em 1979, para revisitar cenas de
seu agrado. Não quer mudar a história; só experimentá-la de novo.
Permanece, no entanto, em suas predições e
conselhos, faça isso e aquilo, o mundo pode ser melhor desse ou daquele jeito,
assim ou assado, mas em seu interior reina um vazio, um nada consta de pouco
interesse para seu publico ávido por bem-estar e segurança no dia a dia e na
empresa, nos relacionamentos e, em alguns casos, na paz do senhor. Enfim, tudo
se conforta em sua fatia de mercado, enquanto ela esta cada vez pior e mais absolutamente
infeliz com seu ganha pão e a vida em geral, especialmente com o fato de não
pode rebrotar boas horas da vida já vividas antes de começar a mentir por escrito,
no comecinho de 1980.
Para variar um pouco, poderia não voltar
aos mesmos lugares daquele ano, mas só a situações, reprisadas com cenários e materiais
de hoje, em que ela pudesse sentir, do modo que sentia na juventude, a mesma
ânsia de viver e o mesmo vigor para o que desse e viesse. Ela própria seria uma
estupenda criatura atual, de pernas rijas, mente processando novidades, sensações
girando no volume maximo e desejos correspondidos. Hoje é quase nada. Vende o
que não tem: esperança e sucesso.
Pessoas que leem aquilo atentamente e ficam
ricas e satisfeitas, segundo diz a orelha de seu último livro, mas não há
referência às que caem em profunda desgraça neste mundo movido a
probabilidades. Ou seja. tudo continua como sempre foi e ela vive disso,
escrevendo justamente o contrário de sua existência.
De modo que alguém também lê um livro de Amélia
com um olhar também oposto ao da autora. Paga para acreditar. Ninguém compraria
um livro se não houvesse a promessa inconsciente de se levar em conta o seu
conteúdo como lenitivo para a vida, quando não um vade mecum para inúmeras
ocasiões. Assim acreditam seus seguidores. Não veem a Bíblia? o livro mais
discutido no mundo cristão não apenas passa informação a seus leitores; de
algum jeito também os pega pelas tripas e nessa agonia deixa de ser livro e
torna-se um lugar aonde milhões de pessoas entram sem pestanejar – algumas, desgraçadamente,
para o resto da vida.
São coisas que passam pela cabeça de Amélia
e que um dia ela pretende contar, e isto, sim, lhe causa duvida porque ao revelar
os bastidores de sua alma perderia a maior parte de seus leitores. Uns poucos,
porém, adentrariam no mundo sombrio da autora e ficariam contentes, pelo menos
aliviados, em não estarem mais sendo enganados.
De alguma forma, Amélia vai terminar no
mergulhar em emoções extemporâneas, talvez vetadas pelas leis da ciência, e
talvez a vontade de trazer 1979 de volta, às vezes com nova embalagem, seja
apenas exercício literário apartado de sua produção de autoajuda. Um jeito de ressurreição
ou de loucura. Tanto faz. Fosse possível, seria um grande presente que daria a
si e aos leitores que lhe restassem. Caso restasse algum.
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