quinta-feira, 24 de abril de 2014

Da cidade para a CIDADE



Helena, a menina da cidade média, sonhava com uma cidade maior e foi embora. Cansou -se de reinar na província e queria mostrar seu trabalho e seu belo rosto para um público mais diversificado – outra gente, outros ares, tá ligado?–, mas sempre voltava em janeiro, ansiosa para rever a velha turma, antigos súditos.  De uns tempos pra cá, no novo lar megalopolitano,  vive basicamente de esperar a viagem para sua terra, um lugar bom para passear, nunca para morar, como diz agora.  Quando retorna ao berço, conta mil histórias às amigas, pequenas mentiras, o sucesso a caminho, bons contatos, vantagens em geral.

A verdade. A mãe paga o aluguel, uma quitinete, e Helena faz esporádicas produções para um  amigo que por coincidência  é seu conterrâneo. Uma vida difícil na metrópole para uma moça acostumada ao conforto de  empregadas, carro e TV a cabo. Mas parece divertir-se com pouco dinheiro, em eventos gratuitos ou festinhas em pequenos espaços, feitas de última hora, normalmente porque permanecer no bar estava começando a ficar muito caro. Outra marca da menina é quase só andar com a colônia de seu estado, tornando os encontros uma oportunidade para falar dos que ficaram – mal, de preferência - e exaltar as qualidades da origem, onde tudo era fácil e aconchegante, mas faltava alguma coisa, talvez várias coisas, e uma delas era um elenco de rapazes menos machistas.

Vez por outra, uma baixa. Alguém anuncia a volta à terrinha. Decisão racional, motivada por absoluta falta de grana, inclusive a do aluguel, e um tempinho na casa da mamãe poderia servir para pensar nas consequências do adeus à vida cosmopolita e a seus lugares abertos à noite inteira, embora ele não pudesse entrar em nenhum deles. Não importa, gostava de estar ali, perdido entre os prédios, pegando o último metrô, catando moedas no bolso. Helena, no entanto, tenta demovê-lo da ideia, é seu melhor amigo, e sugere a sala do apartamento; ele pode pode cair por lá até arranjar outro canto.

A moça sentia-se s coincidência  é seu conterrâneotubeiro. nr lm quartinho e voc na casa da mamó; ele sentia-se como se estivesse voltando não sei quantas casas num jogo de tubuleiro. Ficou.  Apareceu no dia seguinte com sua mudança: uma mala, duas mochilas, um edredon, uma caixa de discos. Tinha um sofá, tentou vender, mas terminou doando à Casa André Luiz por falta de compradores. Não haveria espaço para o sofá aonde quer que ele fosse.  A mudança, mesmo modesta, modificou o desenho do pequeno apartamento, e só naquele instante Helena percebeu que não iria dar certo. Ao mesmo tempo, surgiu uma alegria inesperada pela presença do amigo. Os dias seguiram no acampamento precário à base de miojo com salsichas ou sardinhas Gomes da Costa, dinheirinho contado para o ônibus, pratos empilhados na pia, vazamentos no banheiro e carências mútuas.


O hóspede não tem o menor pendor para o trabalho doméstico e, fora de casa, também não. Equilibra-se no mês sem perspectiva de qualquer remuneração, dorme muito, mas tem disposição para mostrar a Helena o submundinho de nativos pobres e descolados da grande cidade. Nesses lugares, estão o pequeno traficante que dá aulas de capoeira, gente cheia de projetos nas leis de incentivo, meninas que fazem cerâmica, vendedoras de pão integral, grafiteiros e, quase sempre, um argentino.

Helena e o amigo passam a viver nessa turma cheia de vertentes, mas de pouca ou nenhuma objetividade. É quando se lembra que precisa de um emprego careta, qualquer um, porque houve um corte na aposentadoria do pai e agora é trampar ou voltar para casa, a exemplo de muitas. O problema é que não se imagina trabalhando numa loja, por exemplo; quer fazer coisinhas roots, viver entre hipsters, posar de artista.

Passa um tempo. O apartamento virou um ponto de reunião dos amigos do amigo e o barulho vai até tarde, a vizinha reclama, a polícia chega, aquela conversa chata, vamos desligar o som etc; só que depois liga baixinho, vai aumentando aos poucos e chega ao volume de antes e a vizinha reaparece, junto com o marido, não apenas pelo som, mas pelo cheiro de maconha, e aí eles param mesmo, enquanto Helena, deitada no quarto, chora contra o travesseiro,  e jura que amanhã coloca o amigo na rua.

A festinha sofre uma espécie  de decantação e os rapazes começam a ir embora. O amigo de Helena fica com a moça branca de dread, depois de um embate sutil com os demais. Todos a cortejaram porque a outra mulher da casa ainda chorava, e mesmo o fungado do choro, bem audível,  não impediu o amigo de trepar na salinha, naquele aperto, sem privacidade, mas nessa idade tais obstáculos são facilmente contornados, há um cantinho para instalar o edredon e a questão está resolvida. A moça não é silenciosa e a vizinha se exaspera de novo.

No quarto, Helena chora e pensa. Só consegue pensar seriamente quando chora. Podia fugir daquilo, despejar o amigo, mudar de vida. Tinha conhecidas de seu estado que se deram bem, até ex-colegas de colégio; uma delas está no mercado de capitais. Frequentá-las, porém, resultava em prejuízo financeiro por causa das contas em bares chiques. Numas dessas, vai-se o aluguel. Ainda atolada no travesseiro, agora mais úmido, Helena reflete sobre objetivos; primeiro, quais seriam os objetivos e depois disso o estabelecimento de uma meta qualquer de vida.


Não, não expulsou o amigo. Acordou no dia seguinte com a bagunça na sala, desviou-se de cascos vazios de cerveja, abriu a janela, o casal ainda dormia e decidiu que tudo continuaria do mesmo jeito, pelo menos por enquanto. Faltam dois meses para o verão, a mãe já comprou a passagem e as amigas de sua terra aguardam as novidades de sua vida glamurosa na cidade grande.

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