Helena, a
menina da cidade média, sonhava com uma cidade maior e foi embora. Cansou -se de
reinar na província e queria mostrar seu trabalho e seu belo rosto para um
público mais diversificado – outra gente, outros ares, tá ligado?–, mas sempre
voltava em janeiro, ansiosa para rever a velha turma, antigos súditos. De uns tempos pra cá, no novo lar megalopolitano,
vive basicamente de esperar a viagem
para sua terra, um lugar bom para passear, nunca para morar, como diz agora. Quando retorna ao berço, conta mil histórias às
amigas, pequenas mentiras, o sucesso a caminho, bons contatos, vantagens em
geral.
A
verdade. A mãe paga o aluguel, uma quitinete, e Helena faz esporádicas produções
para um amigo que por coincidência é seu conterrâneo. Uma vida difícil na
metrópole para uma moça acostumada ao conforto de empregadas, carro e TV a cabo. Mas parece
divertir-se com pouco dinheiro, em eventos gratuitos ou festinhas em pequenos
espaços, feitas de última hora, normalmente porque permanecer no bar estava
começando a ficar muito caro. Outra marca da menina é quase só andar com a
colônia de seu estado, tornando os encontros uma oportunidade para falar dos
que ficaram – mal, de preferência - e exaltar as qualidades da origem, onde
tudo era fácil e aconchegante, mas faltava alguma coisa, talvez várias coisas,
e uma delas era um elenco de rapazes menos machistas.
Vez por
outra, uma baixa. Alguém anuncia a volta à terrinha. Decisão racional, motivada
por absoluta falta de grana, inclusive a do aluguel, e um tempinho na casa da
mamãe poderia servir para pensar nas consequências do adeus à vida cosmopolita
e a seus lugares abertos à noite inteira, embora ele não pudesse entrar em nenhum
deles. Não importa, gostava de estar ali, perdido entre os prédios, pegando o
último metrô, catando moedas no bolso. Helena, no entanto, tenta demovê-lo da
ideia, é seu melhor amigo, e sugere a sala do apartamento; ele pode pode cair
por lá até arranjar outro canto.
A moça
sentia-se s Apareceu no dia seguinte com sua mudança: uma
mala, duas mochilas, um edredon, uma caixa de discos. Tinha um sofá, tentou
vender, mas terminou doando à Casa André Luiz por falta de compradores. Não
haveria espaço para o sofá aonde quer que ele fosse. A mudança, mesmo modesta, modificou o desenho
do pequeno apartamento, e só naquele instante Helena percebeu que não iria dar
certo. Ao mesmo tempo, surgiu uma alegria inesperada pela presença do amigo. Os
dias seguiram no acampamento precário à base de miojo com salsichas ou sardinhas
Gomes da Costa, dinheirinho contado para o ônibus, pratos empilhados na pia,
vazamentos no banheiro e carências mútuas. ó; ele sentia-se como se estivesse voltando não sei
quantas casas num jogo de tubuleiro. Ficou.
O hóspede
não tem o menor pendor para o trabalho doméstico e, fora de casa, também não.
Equilibra-se no mês sem perspectiva de qualquer remuneração, dorme muito, mas
tem disposição para mostrar a Helena o submundinho de nativos pobres e
descolados da grande cidade. Nesses lugares, estão o pequeno traficante que dá
aulas de capoeira, gente cheia de projetos nas leis de incentivo, meninas que
fazem cerâmica, vendedoras de pão integral, grafiteiros e, quase sempre, um
argentino.
Helena e
o amigo passam a viver nessa turma cheia de vertentes, mas de pouca ou nenhuma
objetividade. É quando se lembra que precisa de um emprego careta, qualquer um,
porque houve um corte na aposentadoria do pai e agora é trampar ou voltar para
casa, a exemplo de muitas. O problema é que não se imagina trabalhando numa
loja, por exemplo; quer fazer coisinhas roots,
viver entre hipsters, posar de artista.
Passa um
tempo. O apartamento virou um ponto de reunião dos amigos do amigo e o barulho
vai até tarde, a vizinha reclama, a polícia chega, aquela conversa chata, vamos
desligar o som etc; só que depois liga baixinho, vai aumentando aos poucos e chega
ao volume de antes e a vizinha reaparece, junto com o marido, não apenas pelo som,
mas pelo cheiro de maconha, e aí eles param mesmo, enquanto Helena, deitada no
quarto, chora contra o travesseiro, e
jura que amanhã coloca o amigo na rua.
A
festinha sofre uma espécie de decantação
e os rapazes começam a ir embora. O amigo de Helena fica com a moça branca de
dread, depois de um embate sutil com os demais. Todos a cortejaram porque a outra
mulher da casa ainda chorava, e mesmo o fungado do choro, bem audível, não impediu o amigo de trepar na salinha,
naquele aperto, sem privacidade, mas nessa idade tais obstáculos são facilmente
contornados, há um cantinho para instalar o edredon e a questão está resolvida.
A moça não é silenciosa e a vizinha se exaspera de novo.
No
quarto, Helena chora e pensa. Só consegue pensar seriamente quando chora. Podia
fugir daquilo, despejar o amigo, mudar de vida. Tinha conhecidas de seu estado
que se deram bem, até ex-colegas de colégio; uma delas está no mercado de
capitais. Frequentá-las, porém,
resultava em prejuízo financeiro por causa das contas em bares chiques. Numas
dessas, vai-se o aluguel. Ainda atolada no travesseiro, agora mais úmido,
Helena reflete sobre objetivos; primeiro, quais seriam os objetivos e depois disso
o estabelecimento de uma meta qualquer de vida.
Não, não
expulsou o amigo. Acordou no dia seguinte com a bagunça na sala, desviou-se de
cascos vazios de cerveja, abriu a janela, o casal ainda dormia e decidiu que tudo
continuaria do mesmo jeito, pelo menos por enquanto. Faltam dois meses para o
verão, a mãe já comprou a passagem e as amigas de sua terra aguardam as
novidades de sua vida glamurosa na cidade grande.
Nenhum comentário:
Postar um comentário