Não
se pode fugir da morte, por enquanto, e o morto ainda é obrigado a aguentar
adulações de toda ordem. Não apenas ao seu caráter e inteligência, mas,
sobretudo, ao modo como deixou o mundo, igual a passarinho, num desenlace
revestido de certa elegância e serenidade. Dia desses, num velório, alguém
notou uma “cara boa” no sujeito estirado em seu caixão há quase 24 horas. Só
faltou dizer que vendia saúde, “você está ótimo” etc. A fisionomia do falecido,
meio esverdeada, não inspirava qualquer consideração dessa natureza. Morto deveria ser poupados de velório. Não pode reclamar da situação vexatória,
como um Brás Cubas, nem mesmo rir de si próprio.
O
corpo é o templo onde sacrificamos animais em rituais sacânicos. Politeísmo hard core no centro do quarto, diante da
tela, no altar dos prazeres. Adoração a qualquer diaba em figura de gente, mesmo
sem a presença desta, pois o sacrifício é simbólico, embora exija esforço
manual, textos e imagens. O empenho das mãos produz o verdadeiro êxtase
religioso – o jorro no final do culto. Nenhuma religião oferece tamanho espetáculo.
Não cobramos dízimos; apenas as despesas com banda larga e itens de higiene.
A
deusa nasceu para todos. Considera-se patrimônio da humanidade, com justeza,
pois distribui aos olhares – raramente às mãos e outras partes – o corpo mais
espetacular do planeta. Nas tardes de domingo, costuma abrir a janela do
quarto, num lento strip-tease, e dos outros apartamentos o futebol é deixado de
lado. Alguns fogem dela com medo de caírem apaixonados pelo impossível; outros
apenas comemoram sua presença. Sempre disfarço meu privilégio de uma noite em
seus braços, mas uma ocorrência dessa magnitude coloca os pensamentos em
desalinho, embaralham as certezas e as duvidas, de tal modo que ambas passam a
ter o mesmo peso ou nenhum. A própria escrita sofre, como fato de chamar a moça
de “deusa”, ao estilo de redatores de revistas femininas. Lembram-se? Antigamente,
chamavam gente da imprensa para escrever legendas sob fotos de mulheres
seminuas. Vinham, então, elogios caudalosos, cheios de comparações matreiras,
e, vez por outra, aparecia a palavra “deusa”. Mas ela é uma deusa, sim, e
trabalha para nossos olhos. Reluzente e
bronzeada, passa a tarde praia, soltando beijinhos pro mar.
O
escritor velho tenta se passar por um jovem escritor. Cria um pseudônimo e uma
idade. Ganha prêmios. Vende. A tempo descobrem o embuste. Os livros encalham.
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