É difícil encaixar-me
neste mundo tão cheio de coisas por todos os lados, então eu termino tropeçando
aqui e ali, esbarrando em pessoas, batendo às vezes a cara no vidro da loja,
como ontem, porque vidro é transparente e do lado de lá estava ela, me
apressei, uma vergonha, a batida foi forte e a queda, desajeitada, e depois meu
nariz começou a sangrar e as flores que levei também estavam sujas de sangue,
então ela veio em meu socorro, meio preocupada e meio pensando como sou sem
jeito e atrapalhado, sem coordenação motora, um desastre. Caído, abri meus
olhos pra ela antes de certificar-me se faltava algum pedaço do meu corpo. A
primeira coisa pensada naquele momento não foi se quebrei o nariz, quebrei, nem
a poça vermelha ainda se formando, foi ela. Pensei também sobre o que dizer
para salvar a situação, sem saber como tirar a desvantagem, meio atônito, e
resolvi encarar com silêncio. Não diria que nunca aconteceu antes porque
aconteceu muitas vezes e ela notaria. Na seqüência, porém, aderi à sinceridade,
mostrando meu medo por ser absolutamente fora deste espaço em que convivemos.
Não apenas eu e ela. Eu e todas as pessoas do planeta.
Expliquei-lhe,
pois, o meu desinteresse por questões do dia a dia, como lidar com aparelhos
domésticos, os móveis, qualquer coisa móvel, o contato com pessoas
desconhecidas e conversas sobre qualquer aspecto prático. Não sentia
curiosidade sobre a vida alheia, estava mais para pensar em questões
existenciais, qual o sentido disso tudo etc. Daí, o incômodo em transitar entre
objetos, amarrar os cadarços do sapato, e acima de tudo se lembrar de pegar a
chave, a carteira e o telefone antes de sair de casa. Dei inúmeros tropeções em
minha vida, batendo o joelho em alguma quina, esbarrando em outros no meio da
rua ou quebrando o nariz, como ontem. Ela reagiu ternamente, e aí descobri que
a amiga de poucos anos, descoberta ao acaso numa livraria, era capaz de reagir
bem a um depoimento tão maluco. “Você é doido”, ela disse, mas disse de uma
maneira amistosa e compreensiva, até com um pouco de admiração, porque havia um
riso de cumplicidade em seu rosto. “Vamos cuidar disso”, falou baixinho,
referindo-se ao meu nariz. Também recolheu as flores ensanguentadas.
Ela achou plenamente normal eu ser assim porque ela também era assim, distraída, absorta, aérea, mas extremamente concentrada num ponto, numa frase, numa miudeza inútil para uso diário. Se alguém sugeria um jantar, ela poderia embarcar numa série de pensamentos sobre o costume de se comer três vezes ao dia e por que tanta cerimônia, em alguns casos, se aquela era apenas uma ocasião de reabastecer o corpo, mas transformada com o tempo num processo envolvendo a arte culinária, as etiquetas à mesa, e daí saltava para as convenções em geral, o modo de organização da sociedade, a história da intimidade humana, enfim, qual a razão de tudo isso etc. Então, por vezes, esquecia do estopim dessas ruminações, o jantar em si, em um restaurante chinês e quando lembrava, sua cabeça passava a girar em torno de outras perguntas, como, por exemplo, “por que chinês?” Então, somos almas gêmeas, ela também costumar dar topadas ou bater a cara em portas envidraçadas e pensar em imbricações subjetivas das nossas ações cotidianas.
A batida no vidro
da porta, tanto sangue depois, a queda, as explicações, terminaram fazendo às
vezes daqueles encontrões de cinema em que um homem e uma mulher se chocam sem
querer na calcada, os pacotes caem, ambos se abaixam para pegá-los e se olham e
se apaixonam. Não chegou a tanto. Mas no hospital, nariz consertado, juntamos
nossos pensamentos distantes, sobre sangue sobre flores, sobre a transparência
do vidro e outras dimensões, sobre tudo, menos sobre nós.
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