Há muito tempo sou velho, desde os
setenta, e a partir daí passei a olhar o mundo repetir-se da forma imaginada,
sem surpresas. Fiz tudo do jeito habitual, casei, tive filhos, netos e
bisnetos, mas o tempo continuou a transcorrer, muitas décadas depois de completar
todos os ciclos, e passo dias e noites a averiguar o que finalmente desconheço.
Desconheço como encarar o resto, sem nada em vista, nem mesmo ansiedade, nada.
Chego assim aos noventa anos, cheio de ideias
para o passado, vide a mania de reconstruí-lo, em detalhes, as figuras dos
anúncios dos jornais, em preto e branco, as mensagens diretas - “tossiu”?
Xarope Beltrão!”-, geladeira à querosene, matéria plástica, a estréia de Gunga Din com o cinema lotado. A memória já está fraca porque tudo que eu tinha
que fazer, fiz, ficou aquele espaço de espera pela morte, em que o sujeito vai
perdendo a razão de viver e apesar disso vive em suas lembranças, o próprio
futuro é baseado em paisagens e tecnologias do passado. Não tem futuro.
O mundo atual quase me sumiu, mas acompanho as
mudanças, de longe, ruminando a razão de tudo isso, o porquê de progresso tão
exasperado, o mistério trincado pela Internet, a intensa rotatividade das ruas
com novos modelos de carros a cada dia. Minha longevidade, por exemplo, depende
dos remédios caríssimos, capazes de atacar doenças fatais no meu tempo. Só não
atacam a raiz, o mal de ter-me perdido lá atrás, a prisão na memória e o tédio
com o mundo de hoje. Não me espanto, previ muita coisa, mas quando previ tinha
disposição para fazer uso delas. Mas elas não foram inventadas ao tempo da
minha disposição Agora, não. Continua apenas a alegria de olhar para lugares
imutáveis, como o prédio dos correios, ou olhar para mulheres, mas elas estão
distantes, me tratam com um velhinho.
Esse hiato já dura 20 anos. Nesse período
vieram a aposentadoria, as dores e o cansaço da memória para fatos recentes. Não
ouço bem, vejo como através de um filó, e só alguma coisa lá dentro, latente,
hiperativa, tenta me empurrar para o dia seguinte. Sei que não há o pote de
ouro adiante, os mistérios de Deus, qualquer consolo a que se apegam alguns.
Fecho os olhos e vejo apenas um tubo de vidro, meio opaco; eu dentro, olhando
para trás, onde há imagens nítidas, e de vez em quando para fora, a confusão
reinante.
Até minha morte parece pertencer ao
passado. Imagino meu corpo no meio da sala, envolvido num terno de linho, morto
às 14h30 do dia seis e abril de 1998. Tinha sessenta e dois anos, uma pena,
pois ainda renderia muito, em termos de produção literária, talvez virasse um
nome em nossas letras, ninguém sabe, certo é que estava estirado no caixão,
rodeado de gente bacana, todas de copos nas mãos, Jam session biográfica
rolando, rememorações, histórias engraçadas, espirituosíssimas, profundas. Fui
e ainda estava ali. Hoje todos os amigos estão mortos, mas continuo com eles,
naquela sala, eu acho.
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