quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Memória



Há muito tempo sou velho, desde os setenta, e a partir daí passei a olhar o mundo repetir-se da forma imaginada, sem surpresas. Fiz tudo do jeito habitual, casei, tive filhos, netos e bisnetos, mas o tempo continuou a transcorrer, muitas décadas depois de completar todos os ciclos, e passo dias e noites a averiguar o que finalmente desconheço. Desconheço como encarar o resto, sem nada em vista, nem mesmo ansiedade, nada.

Chego assim aos noventa anos, cheio de ideias para o passado, vide a mania de reconstruí-lo, em detalhes, as figuras dos anúncios dos jornais, em preto e branco, as mensagens diretas - “tossiu”? Xarope Beltrão!”-, geladeira à querosene, matéria plástica, a estréia de Gunga Din com o cinema lotado. A memória já está fraca porque tudo que eu tinha que fazer, fiz, ficou aquele espaço de espera pela morte, em que o sujeito vai perdendo a razão de viver e apesar disso vive em suas lembranças, o próprio futuro é baseado em paisagens e tecnologias do passado. Não tem futuro.

O mundo atual quase me sumiu, mas acompanho as mudanças, de longe, ruminando a razão de tudo isso, o porquê de progresso tão exasperado, o mistério trincado pela Internet, a intensa rotatividade das ruas com novos modelos de carros a cada dia. Minha longevidade, por exemplo, depende dos remédios caríssimos, capazes de atacar doenças fatais no meu tempo. Só não atacam a raiz, o mal de ter-me perdido lá atrás, a prisão na memória e o tédio com o mundo de hoje. Não me espanto, previ muita coisa, mas quando previ tinha disposição para fazer uso delas. Mas elas não foram inventadas ao tempo da minha disposição Agora, não. Continua apenas a alegria de olhar para lugares imutáveis, como o prédio dos correios, ou olhar para mulheres, mas elas estão distantes, me tratam com um velhinho.

Esse hiato já dura 20 anos. Nesse período vieram a aposentadoria, as dores e o cansaço da memória para fatos recentes. Não ouço bem, vejo como através de um filó, e só alguma coisa lá dentro, latente, hiperativa, tenta me empurrar para o dia seguinte. Sei que não há o pote de ouro adiante, os mistérios de Deus, qualquer consolo a que se apegam alguns. Fecho os olhos e vejo apenas um tubo de vidro, meio opaco; eu dentro, olhando para trás, onde há imagens nítidas, e de vez em quando para fora, a confusão reinante.

Até minha morte parece pertencer ao passado. Imagino meu corpo no meio da sala, envolvido num terno de linho, morto às 14h30 do dia seis e abril de 1998. Tinha sessenta e dois anos, uma pena, pois ainda renderia muito, em termos de produção literária, talvez virasse um nome em nossas letras, ninguém sabe, certo é que estava estirado no caixão, rodeado de gente bacana, todas de copos nas mãos, Jam session biográfica rolando, rememorações, histórias engraçadas, espirituosíssimas, profundas. Fui e ainda estava ali. Hoje todos os amigos estão mortos, mas continuo com eles, naquela sala, eu acho.

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