segunda-feira, 13 de junho de 2011

A morte do senador

O velho político estava na cama do hospital, agonizando, clamando por todos os santos, pedindo perdão pelos pecados, chorando diante da morte, agarrado à existência de forma meio obscena, pois perdeu um pouco daquele catolicismo que apregoava em plenário. Em todo caso, cedeu ao arrependimento. Lamentou as propinas - especialmente as de menor porte -, o tráfico de influência, o desvio de verbas públicas, as mentiras ao eleitorado. A família saiu, ele chamou o assessor, cuja tarefa era lustrar da imagem do parlamentar, mesmo nesse momento de moribundez. “Senador, morra com elegância”, disse o conselheiro. “Não terá mais jornais daqui uns dias, mas restam os livros de história”. O doente terminal revirou-se no leito, pensou em acolher a idéia, mas recordou que suas relações com o mundo acadêmico sempre foram inamistosas. Fez a última proposta: “cuide da minha memória só no meu Estado, no meu Estado, entendeu?”.

O parlamentar tinha deixado um livro de memórias. Valia pouco para historiadores se contemplado com documentos oficiais. Edição esmerada, capa dura, foto de estadista. Só não se podia determinar se ele viveu aqueles fatos, se foram contados por terceiros ou se eram pura lenda. Pior: a parte mais saborosa de sua biografia estava em mãos do Ministério Público. Sobre isso, nenhuma referência.

Sabe-se que o senador deixou este mundo a pulso. Talvez gostasse mais do mandato do que da vida ou considerasse os dois indissociáveis. Áulicos, discursos cheios de citações, jogadas políticas manhosas, carros oficiais, solenidades, prostitutas de luxo, viagens internacionais, dinheiro, poder e ternos bem cortados. Tudo isso acabou. No monitor de batimentos cardíacos, uma linha reta e aquele tradicional apitinho contínuo.

O passamento, porém, saiu a contento. O País fez piadinhas de mau gosto sobre a morte do senador (algumas de bom gosto, também), mas seu Estado chorou. Enterro de primeira, promessas de mais avenidas com o nome do filho ilustre, discursos inspirados em poetas da província e um cargo no Arquivo Público para o fiel assessor. Muitos disseram: “morreu como um passarinho”. Um correligionário, mais afeito às letras, lembrou a frase atribuída ao filósofo Caio Souza Leão: “A vida é uma questão local”.

@_lulafalcao


O post acima é ficção. Qualquer semelhança com vivos, mortos ou mortos-vivos terá sido mera coincidência

2 comentários:

homci disse...

Grande Lula! Sensacional garoto!Esse é um daqueles... igual aquele outro... e só da eles... na verdade... todos iguais. É... e nós aqui... Ufa! que luta.

Lula Falcão disse...

Obrigado, Carlos
abrs

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