quarta-feira, 14 de outubro de 2020

ELE e ELA

 

A sensação de estar ficando louco começou numa tarde em que ele e Ela estavam conversando sobre o passado e de repente suas lembranças eram da vida dela, nítidas, nítidas, porque ele não havia cursado o clássico, que era exclusivo das moças, e até aquele momento era assim, segundo o que lhe informava o lado de fora de sua cabeça, enquanto ele olhava para Ela com assombro e admiração, pois estava certo que tais recordações não lhe pertenciam. Não era o caso de ser outra pessoa nem de implante de memória nem de amnésia nem de telepatia porque os pensamentos emergiam com naturalidade. Ele também se lembrava de seu próprio passado, embora o dela fosse melhor.

De repente, ele passou a contar a Ela que se lembrava de sua prisão por causa de drogas, coisa pouca, mas o suficiente para marcar sua vida, ainda mais porque era mulher. Chegou a dormir na cadeia. Naqueles anos usar maconha era muito mais proibido do que hoje e às vezes até pessoas da classe média também dançavam. Foi um escândalo na família, pensava ele, conforme revivia a cena e recitava detalhes da ocorrência para Ela, como vi na 312 Norte. Naquele presente momento de 1971 os dois tinham em mente as mesmas passagens e o mesmo medo. Ele também pensou que sua vida tinha um papel secundário, uma vida desimportante, passada debaixo do prédio com amigos meio calados.  Ficavam ali olhando quem subia ou descia. Quase só isso.

Naquele momento as lembranças dele e dela estavam mais ou menos sincronizadas. Ele tinha dois passados para recordar. A dualidade poderia ser uma manifestação de loucura, porém muito perfeita, porque Ela estava espantada com os detalhes de suas lembranças guardadas por ele, iguais às dela, sem contar que ele não presenciara nenhum desses fatos renitentes na vida de Ela. Também alinhou memórias sobre dúvidas, receitas de comida, um pronunciamento do general Médici, gordines envenenados nas 24 horas de Brasília, narizes ensanguentados, pirulito Zorro e a primeira vez na rodoviária.  Tudo parecia que foi ontem.

Ela gostava de ser adolescente. Na infância já era adolescente e na fase adulta continuou adolescente. Gostava da palavra “hiato”. Brasília tem grandes hiatos, eu e ela pensávamos, e logo vinha a imagem de cerrado vazio entre superquadras – “ali é a 306, a dos militares” -, ouvíamos, dentro das cabeças. Naquela hora, Ela intuiu que seu passado também me pertencia. Ela deu grito e disse que não podia ser assim, mas era. Depois Ela disse que precisava respirar e saiu para fumar um Continental na janela. Com o olhar perdido em Brasília ainda em construção, o olhar e Brasília, pensávamos, eu e ela, como sempre, no primeiro voo de avião em que nossa empregada pegou uns bolinhos de manteiga e imaginou que era outra coisa e comeu. Viajou tentando deglutir aquilo, não deu o braço a torcer.

Quase todas os pensamentos remetem ao que poderia acontecer dali em diante porque a história dela abriu uma espécie de filial na minha cabeça e isso não tinha explicação.  Mas havia ainda outros problemas a resolver na vida de Ela, também muito tensos e sem solução à vista. Em pouco tempo, talvez uns dois meses, ele já estava acostumado a ter os pensamentos de Ela, mas ela estava perplexa e incomodada, conforme ele viu e pensou. Além da raiva por não saber o que era aquilo, por ele estar com seus pensamentos, até sobre coisas miúdas, desconfortáveis e cretinas. Por vergonha de expor-se dessa forma, mesmo a um amigo, e por achar que também estava ficando louca, que parecia a melhor saída; pelo menos dava para explicar.

Ele não achava incômodo. Ela detestava porque sempre que pensava sobre coisas que deveria pensar, ele imediatamente captava. Já estava tão treinado que não fazia qualquer gesto ao pensar em situações completamente absurdas, enquanto ela, além de irritada com tudo isso, achava injusto só ele ter os pensamentos dela.

Se não há uma explicação médica para aquele acontecimento, talvez restrito só a duas pessoas, seria complicado chegar a um psiquiatra e perguntar o que era.  Ele e Ela seriam enquadrados como loucos – sem contar que ambos levavam essa possibilidade em consideração. Ainda havia um forte preconceito contra pacientes psiquiátricos nos anos de 1970. Então, só os dois, e eu, sabíamos o que se passava e ainda passa, agora com menos frequência porque sobrevieram outras preocupações e outras ideias dentro das cabeças que se separaram por décadas. Desde então, o mundo conheceu muitas verdades da ciência. Menos a verdade sobre ele e ele Ela.

 

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