A vontade de escrever já me deixou. Não
escrevem mais, por isso também perdi a jeito, e não existem mais envelopes com
as cores do Brasil nem espátulas abridor de latão cromado nem selos nem raros
papéis nem carimbos dos correios e telégrafos. São coisas que somem, com o
tempo, e dão lugar a outras, sempre mais práticas. Também não escrevi porque
não queria evocar a poesia dessas antiguidades; tem gente que gosta. O tempo
das cartas, dos telegramas e de outros sustos vindos de longe já foi embora há
muito anos, mas entendi o seu desejo fora de hora de receber uma carta, via
aérea, como antigamente.
Agora, as palavras viajam em outras linhas,
ondas-partículas, e se perdem no espaço depois de lidas. São efêmeras, fugazes
e fugidias e por isso tenho agora, neste momento, a imensa dificuldade em
reuni-las para explicar o que se passa, uma vez que você perdeu a lembrança do
presente e vive no passado, num ponto do passado. Abre o portão de ferro
rebuscado, hoje ferrugem, e pega do carteiro o envelope, postado em 1956,
quando eu ainda não havia nascido.
Em letra miúda e firme, treinada no caderno
de caligrafia, a carta dava conta da saúde dos seus e das mortes na cidade.
Recebeu da amiga a descrição de uma festa em papel pautado, nonsensibilidades
sobre pessoas estranhas à mesa, homens chegados da capital, cheios de vigor e cheiro
de álcool. Correu logo para a resposta, três páginas, igualmente escritura
perfeita, envelope fechado com goma arábica, selos da Princesa Isabel e Getúlio
Vargas.
A cena se repete. Só existe o ano da graça 1956
na mente da senhora que quer a carta e esqueceu-se de outros anos, outros nomes
e quase tudo.
&
Acorda na casa de uma desconhecida depois
de uma noite de muitas ocorrências e poucas lembranças. Houve uma grande
discussão a respeito de uma banalidade qualquer – ele recorda de um pedaço – e
dai seguiu-se uma troca de insultos generalizada e este corte na cabeça deve
ter sido por causa disso, ele pensa. Nu, sangue talhado, ressaca zunindo na
cabeça e provocando taquicardia. Alguém acende a luz no quarto de janela
fechada e ele não sabe dizer se é dia ou já outra noite, e não sabe quem é a
dona da casa e daquele quarto cheio de retratos de atrizes do cinema em preto
em branco, entre elas Kim Novak, com jeitinho sedutor.
Há dias nessa batida, deixando-se levar,
sem medo, apesar da ressaca e apesar de não saber onde está. Não é a primeira
vez. Já acordou em outra casa e ao abrir a porta do quarto viu um monte de
gente sentada a mesa, esperando por ele, perguntando se dormiu bem. Ele estava
tonto porque nunca vira aquele pessoal antes. Todos eram cordiais, como cordial
é agora a dona da casa, ao abrir as cortinas, e dizer que está na hora do
trabalho. Parece cena de filme, mas é real, embora nunca ele nunca tenha
descoberto o nome dessas pessoas que lhes dão abrigo e conforto com certa
frequência.
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